A última audiência pública da Comissão de Legislação Participativa teve como assunto a Lei 13.954/19 e seus efeitos na vida dos militares federais. Os convidados já bastante conhecidos do público militar dispensam comentários. Antes de qualquer elogio à atuação de cada um deles – o que é desnecessário – mais importante é o louvor à aguerrida persistência com que há três anos esses combatentes pugnam por justiça. Porém, mais do que aos advogados, líderes de associações ou aos guerreiros anônimos que assessoram esses que “dão a cara a tapa” em Brasília, essa reflexão é apontada a todos os militares, mas principalmente aos inativos.
Desde que “a ficha caiu” em 2020, quando a nova previdência social das Forças Armadas passou a vigorar, os militares das camadas subalternas iniciaram a busca pelo Graal da representatividade política. “Temos que botar o nosso pessoal no Congresso”; “temos que eleger uma bancada de militares, comprometidos com os praças”, etc. Por três anos, esses e outros brados ecoaram repetidamente pelos grupos de mensagem. O que era indesejado, mas previsível, aconteceu: ninguém foi eleito. Por quê? Há diversas explicações lógicas, sociológicas, etárias, financeiras, ideológicas. Todas bastante previsíveis. Mas, a fundamental, sobre a qual se assentam todas as outras é a simples falta de autoconsciência de classe.
Um dos passatempos preferidos dos praças é culpar os oficiais por suas mazelas. Reza a lenda que os oficiais são corporativistas, que só veem o próprio lado, etc. Não é inteligente generalizar isso. A previdência militar, com sua lei contrária ao espírito constitucional, porque discriminatória, foi construída ao longo de anos. Não há como saber se ela nasceu torpe ou se foi pervertida pelo punhado de generais golpistas e alérgicos a povo deste governo. A ideologia política da extrema direita, tresandando a elementos bastante caros à cúpula militar tais como o autoritarismo, o elitismo, o desprezo pelas camadas inferiores da hierarquia forneceram o terreno insalubre ideal para a implantação da Lei n° 13.954/19. Os artífices disso não foram as Forças como um todo, mas uma pequena gangue de oportunistas fardados. Longe de ser um processo democrático, a Lei foi a coroação de uma operação clandestina em estilo militar.
Para os que “têm olhos de ver” a audiência na CLP forneceu uma ideia do quanto as camadas subalternas das FA, mais do que de representatividade, carecem de autoidentidade. Brasília conta com o segundo maior efetivo de militares do Brasil, perdendo apenas para o RJ. Havia mais pessoas discursando contra as mazelas da previdência militar do que afetados por ela na plateia! Por mais que os dados apresentados e os testemunhos ilustrados tenham sido verídicos, e eles são, se não houver gente de carne e osso, se não houver “massa crítica” atuante é muito difícil haver representatividade, e é impossível haver representatividade sem antes haver identidade.
Quem é o praça das FA? Uma mera sombra do oficial? Um coadjuvante sem maior importância na defesa da pátria? Um pensamento que se cristalizou em doutrina é que “os defensores naturais dos sargentos são os oficiais”. E o que é um defensor, senão um protetor, um guardião paternal, enfim, um …amante!? Enquanto houver interesse, a relação entre os amantes perdura. Mas, quando o amor acaba, e está provado que ele acabou em 2019, o que esperar dessa relação?
É quase certo que a classe, principalmente as categorias de base, não terá representantes regulares nos poderes tão cedo. Os militares não conhecem isso. Não foram treinados para isso, não foram ensinados a fazer isso. O apreço que em geral têm pela democracia e sua construção é insuficiente, quase inexpressivo. O fluxo rigidamente ordenado da hierarquia, e sua válvula dosadora, a disciplina, inevitavelmente formaram um tipo de pensamento linear que condiciona o indivíduo a esperar que, assim como a punição “vêm de cima”, de cima também venha a solução de seus problemas. É uma limitação mental quase intransponível…
Mas, ainda assim, mesmo com a carência de representatividade e a pouca inclinação democrática, essa CLP propiciou algo que poucos notaram. Abriu-se uma janela para que as associações de praças e os escritórios de advocacia militar se cadastrem na Câmara Federal. Isso foi um passo importante. Por mais que os generais sempre ostentem e abusem do prestígio que é negado aos sargentos, a partir de 2023, as categorias de base devem ter uma cabeça de ponte dentro do Congresso. O “déficit democrático” pode ser substituído por uma “pinça” semelhante e paralela às assessorias militares manobradas pelos generais. Além disso, depois de três anos sendo ignorada como se fosse um fantasma, a classe foi ouvida por políticos da base governista, coisa que nunca antes ocorreu. Se não for possível (vencer essa guerra) pela representatividade democrática que seja por outros meios. A justiça não está assegurada, mas há uma picada aberta.
JB Reis
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