“Todos os Estados bem governados e todos os príncipes inteligentes tiveram cuidado de não reduzir a nobreza ao desespero, nem o povo ao descontentamento.”
(Nicolau Maquiavel)
Em dezembro próximo a grande farsa da reestruturação da carreira militar completará dois anos. Praticamente não há mais o que falar sobre o assunto. Tudo já foi mais do que escrutinado. Os principais atores já foram desmascarados. Tanto as vítimas quanto aqueles que as imolaram no altar neoliberal do governo Bolsonaro já são mais do que conhecidos. Em linhas gerais, as Forças Armadas na verdade sofreram um processo de canibalização, já que recursos que deveriam ter sido dirigidos a todos os militares, foram direcionados ao topo da carreira, de forma a compensar os generais e suas pensionistas pela bitributação criminosa imposta indistintamente a todas as pensionistas. A manobra inédita na história militar, realizada a várias mãos – inclusive por mãos fardadas – foi capitaneada por vários homens públicos. Estes homens, muitos deles que ironicamente só se elegeram em 2018 por terem algum tipo de vínculo com a família militar, sairão em campanha eleitoral no ano que vem a cata de votos.
O militarismo é um sistema muito antigo. Assim que as primeiras civilizações se organizaram, formaram seus exércitos. Gaba-se a sua elite, os orgulhosos generais, de que a instituição militar é a mesma há milhares de anos. Autoengano e mentira. O soldado é antes de tudo um cidadão, e como tal, é resultado da evolução social. A complexificação das sociedades, principalmente depois da revolução industrial, vem reconfigurando tudo, e, mesmo que de maneira lenta, quase imperceptível, força o militarismo a se adaptar aos novos tempos, quer o sistema aprove as mudanças ou não, quer elas sejam boas ou não. Nas sociedades mais simples do passado, quando as relações humanas eram de muita proximidade e interdependência, a confiança cavalheiresca era suficiente para que se delegassem sem reservas o comando e a representatividade dos soldados aos seus chefes. O paternalismo, no bom sentido do termo, era o código de conduta por excelência, pois que perfeitamente adaptado a um mundo sem grandes nuances sociais. A palavra empenhada era tão confiável quanto hoje é o contrato escrito. O crepúsculo das monarquias e o consequente surgimento das democracias ocidentais com o subsequente acesso do cidadão comum ao poder público foi tornando o militarismo com sua estrutura psicológica medieval uma relíquia exótica, pela qual poucos se interessam, exceto quando estouram conflitos bélicos.
Góes Monteiro, general de maior destaque no governo Vargas, ignorante do futuro, escreveu: “nunca houve no Exército, e com ele é incompatível, essa ideia de classe no sentido moderno (sindical) de se contraporem umas às outras em busca de benefícios exclusivos. E é claríssima a nocividade de tais criações esdrúxulas nas classes armadas.” Os defensores naturais dos sargentos, acrescentou, eram seus chefes e o próprio Exército.[1] Mas como dissemos acima, os tempos mudaram, e quem paga o preço pela cristalização ideológica da caserna são os mais fracos, a classe subalterna, sem voz, amordaçada pelos regulamentos, alijada do poder central e dependente do paternalismo desde sempre ensinado aos comandantes, ingenuamente confiante de que estes farão prevalecer a justiça, em nome da camaradagem.
Mas o romântico código cavalheiresco não resistiu ao moloch neoliberal de Paulo Guedes, o ministro rei da economia bolsonarista, escola econômica que não vê conflito moral entre offshores ministeriais e quinze milhões de desempregados. Determinados a ganharem o suficiente para levar as esposas aos restaurantes mais caros do mundo, os generais patriotas e conservadores de Bolsonaro não se pejaram em incorporar o marxismo clássico à sua ética camaleônica, e decidiram em 2019 que, sim, havia classes na caserna. A deles e a do resto… E que a classe deles, e quem porventura lhes estivesse no raio de influência, teriam prioridade na “reestruturação”. O fim da história é conhecido. A Lei 13.954/19 está dando seus frutos amargos para a esmagadora maioria, que, ironia das ironias, carregou Bolsonaro nos ombros, e beneficiando os que provavelmente nunca votaram nele.
Os congressistas que conspiraram com as assessorias parlamentares (braço estratégico dos generais marxistas dentro do teatro político) – alguns que, para descalabro maior, eram subtenentes e sargentos – sairão daqui a alguns meses à procura de votos para se reelegerem. Não há lógica nem motivos racionais para que os militares tapeados pelo engodo bolsonarista novamente votem em quem os traiu. Aqui, adentramos o terreno nebuloso e incerto das psicopatologias. Depois de três anos de um desempenho sofrível à frente da Administração Federal, o bolsonarismo ainda apela para os mesmos motes loucos que o elegeram: a inacreditável luta contra o comunismo (sendo que a imparável máquina chinesa transita livremente e faz negócios bastante vantajosos no Brasil), o ódio aos partidos de esquerda (sendo que até 30 de outubro, bolsonaristas e petistas votaram juntos em 349 pautas no Congresso Nacional), entre outras bizarrices. Em 2022 a farsa vai se repetir, mas uma volta acima na espiral da história. Bolsonaro e seus cúmplices, que lesaram a família militar, estarão nas ruas, reais ou virtuais, à procura de votos para continuarem a escalpelar os militares da base, estarão à procura dos ingênuos que os elegeram e que, como bons portadores da conhecida síndrome de Estocolmo, queiram repetir a dose. É impossível atingir um fim diferente, cometendo os mesmos erros.
JB Reis
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[1] “Forças Armadas e política no Brasil”, de José Murilo de Carvalho; Ed. Zahar, 2005