As Forças Armadas brasileiras e sua tara antirrepublicana de ser polícia do pensamento
Um regime de exceção, de qualquer espectro político que seja, tem como pilares a ideologia – para dominar as mentes -, e o militarismo – para dominar os corpos. Por mais esdrúxula que seja a ideologia, ela sempre vai encontrar adeptos, e a força bruta (o militarismo) se encarrega das dissidências e indecisões. Um sujeito sabidamente violento não age com violência apenas nos espaços públicos. Sua primeira esfera de ação é no espaço privado, isto é, sua própria casa. Ninguém duvida que suas primeiras vítimas são os membros mais vulneráveis de sua própria família.
O livro “Praças em pé de guerra” conta as desventuras do movimento chamado de “comando dos sargentos”. Um grupo de militares que foram perseguidos pela cúpula militar na década de sessenta, e finalmente impedidos de tomar posse de seus cargos eletivos conquistados democraticamente. O que se seguiu aos episódios narrados no livro (único na literatura brasileira) é mais do que conhecido; um ano depois deu-se o golpe militar. A comparação das Forças Armadas com um valentão qualquer não é mera retórica. Os primeiros a sofrer com os expurgos nos quartéis (eufemismo para perseguições, expulsões e até desaparecimentos) foram os mais “fracos”, isto é, os militares que se posicionavam fora da curva ideológica projetada pela cúpula fardada.
Em 2022 o “comando dos sargentos” ressuscitou por obra e graça da reestruturação da carreira feita em 2019 pelas mãos de políticos escolhidos a dedo pelos oficiais generais. Muitos militares das camadas subalternas da hierarquia vão concorrer a cargos políticos como reação à tal reforma, que revelou aos que elegeram o atual presidente da República, que as elites, fora e dentro dos quartéis, pensam exatamente da mesma forma, e que o “espírito de corpo” entre os oficiais e a tropa, que faltou em 1963, também se absteve em 2019. Porém, conquanto haja diferenças formais, há semelhanças substanciais entre as duas encarnações do mesmo fenômeno, sendo a infiltração da política na profissão o fio condutor da história.
O livro “Forças Armadas e política no Brasil” cita que “medidas tomadas pelos militares vitoriosos em 1964 implementaram reformas organizacionais (…) [para] imunizar as Forças Armadas contra as divisões políticas. Além dos expurgos dos opositores, intensificou-se o controle hierárquico e ideológico sobre os oficiais, expandiram-se os serviços de inteligência”, entre outras “providências”. Aos povos que não aprendem, a história pedagogicamente se repete. Depois de quatro anos de governo, a politização dos militares têm desfeito amizades trintenárias e dividido membros da família militar como nunca antes.
Um pequeno documentário da BBC Brasil conta um pouco da rotina incômoda de policiais militares que são adeptos da esquerda política e os assédios e perseguições que sofrem dos próprios colegas e superiores devido à ideologia que abraçaram. Um episódio que tivemos oportunidade de “presenciar” em “tempo real” numa rede social foi o flagrante de um oficial do EB (em serviço ativo) declarar em postagem pública que um coronel da reserva da mesma força (“irmãos de farda” portanto) estaria sendo “monitorado de perto por integrantes da ativa” (isto é, a Força terrestre, segundo aquele militar – que supõe-se não seja um mentiroso – estaria espionando seus próprios militares por conta de opiniões políticas). Essa afirmação é bastante verossímil, se considerarmos uma matéria publicada em 2021 pela Revista Sociedade Militar, que revelou com exclusividade que o Exército Brasileiro monitorou movimentações de militares e de políticos de esquerda nas redes sociais na época da tramitação do PL 1.645, dois anos antes.
O que estão vivendo muitos militares, dentro ou fora da farda, é resultado direto da politização da caserna e da tentativa do governo atual de militarização da sociedade. A espionagem ridícula feita por setores de uma Força Armada contra o pessoal da reserva, e o assédio moral e a perseguição administrativa contra o pessoal da ativa, conforme o testemunho da história, não são deslizes de uma pessoa específica, não são um exceção, são antes um consequente natural da politização indevida e ilegal, e se isso não parar, serão, como no passado, novamente uma regra. A imagem das Forças Armadas sempre foi de ordem formal e unidade de pensamento, mas isso não se conseguiu artificialmente, foi resultado de séculos de endoutrinamento racional. É previsível portanto que, dada a impossibilidade de se cercear o pensamento individual, esses velhos “procederes” reciclados pelas Forças não só continuem como recrudesçam e se tornem hipocritamente no futuro meras “questões internas” nos quartéis. O que se vê é que, apesar do avanço tecnológico, a instituição militar no Brasil a cada meio século insiste em regredir cem anos.
JB Reis
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