Lugar de militar
“Em defesa do Exército, desse Exército enxovalhado pelo presidente da República, desse Exército que V.Exa., general Setembrino, de modo algum representa.” (Nelson Wernek Sodré)
É pouco razoável, sem falar que seria muito injusto, desqualificar a profissão militar e sua ideologia fundamental, o militarismo, tendo como base exclusivamente seu campo de atuação. Afora algumas minorias político-ideológicas radicais descoladas da realidade que apregoam abertamente a extinção total do militarismo no Estado (algumas até defendendo o fim mesmo do Estado), a maior parte do espectro político e a população em geral não só defendem como apoiam forças armadas fortes e prontas para a defesa eficiente dos países. Salvo as tresloucadas exceções, é quase unânime o senso comum de que num mundo em que líderes mundiais discursam sobre paz sentados sobre arsenais nucleares, um povo que advogasse o fim dos exércitos seria no mínimo antipatriótico. Acontece que desde 2018, não há mais como desatrelar a palavra “militar” da palavra “governo”, e principalmente de Jair Bolsonaro. Uma frase de efeito muito dita ultimamente é que “lugar de militar é no quartel”, longe de outras atividades como política e administração pública, por exemplo. Os segmentos da sociedade que por quaisquer motivos – justificáveis ou não – já tinham reservas para com os militares, agora, devido à politização quase pornográfica das Forças Armadas, recrudescem as antigas antipatias ou criam novas.
Relegar o militar a cidadão de segunda categoria, restringindo-lhe direitos ou mesmo banindo-o terminantemente da cidadania plena, alijando-o da esfera política – como querem alguns radicais – é tão temerário quanto implorar por uma ditadura militar. O fogo precisa ser controlado pelas válvulas adequadas, e não atiçado, pois pode vir a incendiar a casa. Isso é de fácil compreensão, quando se observa uma pequena parte do quadro, um ato isolado num período curto de tempo. Mas, quando se perde de vista no horizonte o início do processo de militarização da política ora em ato, quando se veem apenas os efeitos dele, de modo que a maior parte dos observadores ficam iludidos e, mesmo os mais argutos, perguntam-se “como chegamos a este estado de coisas?”; quando a grande imprensa se mostra perdida na superficialidade dos fatos e demonstra estar sendo parte passiva e cúmplice no desenrolar desse processo; quando finalmente esse ângulo de estol é atingido, não há como retornar à etapa anterior, e o futuro tende a ser cada vez mais obscuro e radicalizado.
Na semana passada tramitou na Câmara dos Deputados o projeto de lei referente à regulamentação do ensino domiciliar. O homeschooling é pauta antiga, tem quase dez anos, mas, assim como o voto impresso, também foi cooptado por Bolsonaro em 2018, tendo sido colocado sob o guarda-chuva super elástico das “liberdades individuais” conservadoras. Partindo da premissa de que este governo é, conquanto não de direito, mas de fato, um governo militar – uma entidade reacionária invisível parasitando o Estado – pode-se perceber a assinatura genética do militarismo, seu modus operandi na condução de tema tão estranho às lides da caserna. Na medida em que a estrutura hierárquica militar rígida e sectária funciona em forma de pirâmide, tendendo a conduzir tudo para cima, em detrimento da base – sobre a qual acha natural estar assentada – este governo também trabalha para atender uma minoria elitista, uma vez que os beneficiados pelo homeschooling serão poucas famílias ricas, que serão tratadas pelo Estado como unidades educacionais em pé de igualdade com escolas comuns, com todos os gastos de dinheiro público decorrentes disso, causando futuros prejuízos financeiro e administrativo aos erários estaduais e criando novas estruturas de fiscalização burocrática (com tudo o que delas decorre). Mas nem tudo é só cumprir promessa de campanha.
No fim (ou no início desse circuito, tanto faz) está a ANUP, Associação Nacional de Universidades Privadas, cuja presidenta é ninguém menos do que a Sra. Elizabeth Guedes, que por uma estranha coincidência do destino – ora, vejam só! – é irmã do ministro da economia, Paulo “Ipiranga” Guedes. Como o Brasil sempre foi a terra das coincidências, nenhum órgão de controle externo ou interno enxergou nisso um problema, e a aprovação ou não do projeto está agora com o Senado. As instituições seguem funcionando normalmente…
Mas, além da suposição teórica acima, na prática o que os militares têm com isso? “Segundo informações da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), somente de 2020 para 2021, o governo cortou 18,16% da verba para universidades federais, um total de mais de R$1 bilhão. A associação ainda afirmou que o corte atingiu todas as instituições, mas em graus diferentes e sem critério conhecido.” Publicação online do Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul – Sinpro/RS atesta que a “educação pública perdeu quase 40% do orçamento em seis anos”. O governo trabalha para abrir um buraco dentro de outro. Mas, nada disso é novidade numa república embananada, exceto pela presença pegajosa dos tentáculos da regência militar lá na ponta do sistema educacional.
Um axioma bolsonarista diz que a principal causa de notas baixas nas escolas públicas é a violência nas periferias, a doutrinação petista nas salas de aula e a indisciplina dos alunos. Este é o problema. Qual a solução apresentada e já implementada pelo governo? ECiM (Escolas Cívico Militares). É ruim que haja disciplina? Não. É necessário resgatar o respeito pelos professores? Sem dúvida. Mas, o governo cogitou aumentar salários? De jeito nenhum! Investiu pesado em educação, tecnologia, infraestrutura escolar? Nem pensar. Enquanto o orçamento geral da educação minguou nos últimos anos, os recursos direcionados para as ECiM mais do que triplicaram (foram de R$18 milhões para R$64 milhões, segundo matéria do jornal O Globo.)
Enquanto as escolas públicas não militarizadas fenecem, as escolas ideologizadas do governo “acima de todos” prosperam graças ao dinheiro que deveria ser de todas. Talvez por isso a adesão das comunidades ao novo modelo seja tão pronunciada. O governo federal institucionalizou o escambo ideológico, e pintou na fachada com letras douradas a palavra “militar”.
Mas, o governo Bolsonaro parece realmente ser apenas a seringa que injeta o veneno. Em 19 de maio último, os institutos Villas Bôas (sim, do general tuiteiro), Sagres e Federalista apresentaram o seu “Projeto de Nação – O Brasil em 2035”, um documento de quase cem páginas tresandando a Olavo de Carvalho e regado a suco de “militarices” as mais toscas. O projeto foi coordenado pelo general Luiz Eduardo Rocha Paiva, ex-presidente do grupo Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), a ONG do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o torturador ídolo do presidente da República. Rocha Paiva disse que o estudo é “apartidário, aberto e flexível”. Seria bom que esse “admirável manifesto novo” fosse conhecido de todos. Já que estão tão juntinhos feito tubarão e rêmora, seria interessante ver o candidato Bolsonaro explicar ao brasileiro médio como os generais do exército “dele” pretendem explicar que a classe média (a mesma atacada por Lula da Silva, há alguns dias) deverá pagar mensalidades nas universidades e no sistema público de saúde “para racionalizar atividades e procedimentos”.
Não basta que queira apagar o passado, distorcendo a história, louvando a ditadura e idolatrando torturadores, uma panela de militares de elevada hierarquia agora pretende também controlar o futuro, desenhando um cenário cada vez mais distópico e afunilado para cima, à moda da caserna, onde tudo e todos os esforços da massa manietada existem unicamente para fortalecer um núcleo inacessível onde se encastela uma elite privilegiada. Alguma crítica ao militarismo e à sua ética “particularíssima”? Não. A sociedade militar é excepcional na medida de sua destinação, não por questões valorativas, isto é, dentro de limites precisos, pode e deve ser fortalecida. Seu objeto é forjar guerreiros, jamais formar cidadãos. Para isso existe a sociedade aberta. Apenas como corolário, é necessário que se diga que uma coisa nem sempre é totalmente ruim em si mesma. Ela pode estar simplesmente fora de lugar.
JB Reis
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