“(…) tais dispositivos previnem justamente a quebra da hierarquia e da disciplina, com ataques a autoridades civis e militares, (…) a politização das corporações, evitam o descontrole do braço armado do Estado que, como demonstramos, pode ter muitas consequências, como aumento da criminalidade, medo e pânico na população, perda do direito de ir e vir, grandes prejuízos para a economia, para patrimônios de pessoas, empresas, público, histórico e mesmo para a democracia com a manipulação de resultados eleitorais, chantagem política e politicagem e até a derrubada de um governador eleito como vimos.”
“Hierarquia e disciplina são garantias constitucionais – Fundamentos para diferenciação do Direito Militar”, de Adriano Alves-Marreiros.
As manifestações de sete de setembro serviram, entre outras coisas, para demonstrar que o apoio de parte da população ao governo está majoritariamente atrelado à repulsa justificável que os outros dois poderes inspiram. Ou seja, nada mudou, e Bolsonaro segue sendo o preferido de muitos como um mal menor. Entretanto algo novo surgiu desse caldo de miséria psicológica e marasmo político. Abriu-se uma caixa de pandora, quando inúmeros militares da ativa, ignorando (ou testando) o sistema manifestaram-se abertamente em defesa das manifestações e a favor do Presidente da República, contrariando normas estatutárias e afrontando governadores. Mas como sabemos que no Brasil normalmente o buraco sempre é mais embaixo, a ópera sobe um tom no surrealismo quando observamos que alguns políticos parecem ser os orquestradores dessa microrrevolução estatal. A única descoberta que não surpreende é quem pode ser o grande responsável por mais esse “mitoshow”.
Não é segredo para ninguém, exceto para seus seguidores mais fanáticos, que Jair Bolsonaro só tem um trunfo: o blefe. Mas mesmo o melhor dos blefes precisa ter um lastro no mundo real. Neste caso particular, o blefe é sua verve autoritária, e o lastro são os militares. O Presidente age como se os militares fossem seus animais de estimação seguros por uma fina coleira de bravatas, que a qualquer momento pode arrebentar. O sete de setembro, até então um mero feriado para muitos, tornou-se palco para uma tempestade perfeita, mas que nada mais foi do que outro ato falho presidencial. Mais um blefe. Não houve intervenção militar. Não houve invasão do STF. Mais uma vez um pastel de vento, que só deixou os adoradores babões com mais raiva do PT.
Porém, um ingrediente novo foi sorrateiramente jogado nessa panela do diabo. A politização das forças de segurança deu mostras de estar a todo vapor. Em vários pontos do País, ocorreram diversas manifestações individuais de militares da reserva e até de alguns da ativa convocando as pessoas para os atos do dia sete. É de se esperar que os que agiram assim, em aberta afronta às leis militares, sejam punidos com o rigor da legislação e que não seja imposto algum absurdo sigilo de cem anos. As instituições militares não podem ficar reféns de estratagemas políticos, e a sociedade civil precisa estar atenta a esses incipientes movimentos revolucionários – precisamos pôr os pingos nos is, é de revolução que se trata.
Mas o que foi realmente mais preocupante, até por conta do raio de ação que tem um homem público, foram as falas de alguns políticos, primeiramente de um deputado estadual de São Paulo, caninamente bolsonarista, defendendo a legitimidade e o direito dos militares de participarem das manifestações em prol do governo. Não se discute de modo algum o direito que o profissional das armas tem de escolher esse ou aquele representante político, mas a legislação militar, mesmo das forças auxiliares, é pródiga em restrições à manifestação política por parte de praças e oficiais em serviço ativo. O mencionado parlamentar defendeu em um jornal de grande popularidade que os militares deveriam e poderiam participar das manifestações a favor do governo federal, já que segundo ele não seriam “cidadãos de segunda classe”. Fazendo tábua rasa dos regulamentos militares, este parlamentar insinua que os militares deveriam transgredir especificidades da legislação em nome de mandamentos inscritos na Constituição da República. Parece esquecer o iluminado político que os direitos aplicados aos militares sofrem restrições legais não por serem eles subcidadãos, para segregá-los ou alijá-los da cidadania civil plena, mas simplesmente pela proteção da própria sociedade – é apenas um dos muitos ônus da profissão. Segundo ele, os militares não poderiam ser penalizados por se manifestarem politicamente em suas “horas de folga”, como se farda fosse algum tipo de fantasia ou “saia e blusa”, que o soldado pendurasse ao fim do dia para à noite engrossar manifestações a favor de políticos. Já um deputado federal da base governista pretende dar um nó na legislação e defende que o novo Código Penal libere os militares para se manifestarem politicamente, estendendo-lhes o direito constitucional amplo, que pela própria lógica do Estado democrático sempre lhes foi parcialmente vedado, da mesma forma, não por maldade do ordenamento jurídico, mas para proteção da corpo sociopolítico da Nação.
Ao que parece, de maneira oblíqua, os políticos que têm alguma relação com o governo Bolsonaro estão insidiosamente trabalhando para solapar as instituições militares. Isso aparenta ser uma ação orquestrada, orientada. O que pretendem com isso? Aparelhar os quartéis, assim como a esquerda fez com as universidades? Ou simplesmente jogar os soldados uns contra os outros? Sim, porque nem todos os militares são bolsonaristas, nem todos são “mitomaníacos”. Mas as ações desses dois deputados, um federal e outro estadual, não seriam motivo de espanto, dada a moral dúbia que ostenta a maioria dos nossos políticos, exceto por um detalhe escabroso… Os dois políticos são militares! Como podem eles não saber que o militar deve primar pelo respeito à lei e à ordem vigente, e que esta mesma ordem proíbe com letras garrafais a manifestação política do pessoal da ativa das forças de segurança? Ou será que sabem exatamente o que estão fazendo?
Pode parecer perseguição ou “monotematismo”, mas é impossível não creditar essas aberrações ao atual Presidente da República. Seu único passatempo nos últimos três anos tem sido escandalizar. Tendo assumido a presidência como uma promissora chance de arejamento do cenário político nacional, com promessas de campanha até então negligenciadas pelo establishment político, ele rapidamente virou a casaca e se rendeu à mesmice e mostrou que não passava de um prometedor profissional. Revelando-se um presidente fraco, desenvolveu ganas de um agitador revolucionário de mão cheia, possivelmente como forma de compensar sua dificuldade em governar. O inesquecível episódio do general da ativa que participou de um comício pré-eleitoral parece ter aberto um portal a dimensões inauditas de relativismos. “Se o general pode” [não, ele não pode] “por que nosotros não podemos!?”. Parece ter sido este o recado subliminar passado adiante pelos políticos militares que, entre todos os outros, jamais deveriam acatar tamanho absurdo. A baixa canalha parlamentar e fardada que surfou na onda Bolsonaro, não satisfeita em ter traído as categorias militares de base, por ocasião da reestruturação das carreiras, agora, depois que o próprio comandante supremo meteu o pé na porta, esmera-se em prostituir e corroer os próprios fundamentos do militarismo em nome de um projeto pessoal de poder.
JB Reis – https://linktr.ee/veteranistao
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