“A montanha repousa sobre a terra: a imagem da desintegração.
Assim, os superiores só podem garantir suas posições mediante dádivas aos inferiores.”
(I Ching)
Quando vemos um arranha-céus imponente, raramente lembramos que ele é feito de simples tijolos. Quando nos admiramos da brancura da praia, enxergamos apenas a totalidade da areia, mas não lembramos que aquele lençol de extrema beleza é feito de minúsculos grãos. Não nos ocorre com frequência que o pão cotidiano seja resultado da reunião de bilhões de humildes grãos de trigo. Há um sem número de exemplos que nos mostram o quanto nos deslumbramos diante de grandes efeitos, mas somos ao mesmo tempo desatentos à singeleza das pequenas causas. Algo semelhante pode ter se dado entre Jair Bolsonaro e a Família Militar.
Em 2018 o candidato à Presidência da República pela extrema-direita foi eleito como coroamento de anseios legítimos do cidadão comum, pouco afeito à política, sem muita inclinação a estudos mais profundos sobre ideologias, e que tinha exigências simples, sendo o combate à corrupção a principal delas. Exigências simples, de pessoas simples, como simples são os tijolos e os grãos de trigo. Tendo sido militar de carreira, obviamente a Família Militar em peso votou nele. Os militares reticentes ao conservadorismo político, os militares indecisos, ousamos dizer que mesmo alguns militares adeptos da esquerda política podem ter votado nele.
É sabido que todo voto tem um potencial de se multiplicar, mas o voto do militar – entendido aqui como a declaração prévia e a justificativa desse voto – pesa mais. Há dois pesos. Um deles é a capilaridade social dos militares. Em qualquer cidadezinha de fronteira há um quartel. Aí está a Família Militar. Em qualquer cidade brasileira, há o garoto que até ontem jogava bola na rua e agora é um soldado garboso que dá orgulho à vizinhança. As vilas militares são exemplos em todo Brasil de convivência pacífica e agradável. Não é preciso muita propaganda, muito convencimento. Esses pequenos “tijolinhos” construíram ao longo de muitos anos o edifício grandioso, porém sóbrio das Forças Armadas. O segundo peso – de certa forma, decorrente do primeiro – é o grau de popularidade e respeito alcançado pela instituição após a redemocratização. Disse o então presidente Temer em 2018: “O aumento das candidaturas de militares a cargos executivos talvez seja reflexo da própria credibilidade do Exército e das demais Forças, a busca por pessoas que têm ideais e valores.”
Sendo uma de suas antigas promessas a correção de injustiças feitas por governos de orientação socialista no passado, a esperança de toda a Família Militar era naturalmente que o atual presidente recuperasse prejuízos morais e financeiros que lastimavam os militares, principalmente das camadas mais humildes da hierarquia. No segundo ano de mandato, o capitão reformado do EB sancionou a nova lei previdenciária militar. Não só não honrou a palavra dada (qualidade básica do bom militar), como cravou mais pregos no caixão dos militares mais vulneráveis, de graduações subalternas e todos da reserva, além das pensionistas. A desilusão criou corpo e transformou antigos eleitores em inimigos. Transformou grãos de areia em pedras no caminho.
Uma coisa que é pouco dita, mas que não pode arrefecer, é que não é exato dizer que milhões votaram pela volta do PT. Mais exato seria dizer que milhões preferiram defenestrar o atual governante, apesar da volta do PT. No meio desse quadro pollockiano, é tentador dizer que a diferença pequeníssima de votos no último dia 30 de outubro foi efeito da “facada” que a Família Militar tomou do presidente, já que os maiores contingentes de militares (e familiares) se concentra no Sudeste – onde a rejeição a ele foi maior. É matematicamente improvável, mas não é impossível.
O voto é secreto. Não é impensável que no aconchego da urna inviolável os bolsonaristas militares mais empedernidos possam ter virado ou meramente anulado o voto, enquanto ostentavam a camisa da seleção. Quem pode dizer que não!? Da mesma forma que, ao longo de trinta anos, de quartel em quartel, o futuro ex-presidente tenha angariado uma massa de eleitores em troca de uma promessa que não teve força moral de cumprir, não seria de espantar que a gota d’água para perdê-los tenha sido a traição legislativa cozida pelos generais e sancionada por ele trinta anos depois.
JB Reis
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