“Podemos assim ver o populismo de direita como o fornecedor de uma causa para o neoliberalismo. O anseio desesperado das massas é saciado com uma história simples em que o vilão é óbvio: a elite, as feministas, os estrangeiros, os traidores, seja quem for.”
(Ece Temelkuran)
O governo atual, mais apropriadamente uma regência militar, está em seus últimos suspiros. Apesar do anacronismo de ter sido manietada por uma junta semi-secreta de oficiais generais, a atual administração guarda semelhanças obrigatórias com governos passados. Não ficando muito atrás de nenhum mandato anterior, este deixou suas pontas soltas, seus escândalos morais e financeiros, e pouca ou quase nenhuma contribuição de peso para tirar o país do atoleiro mundial em que patina há séculos. Mas, houve ineditismo em um item. Uma herança nefasta plantada pela extrema direita política, a radicalização ideológica. Qual a influência dos militares nessa bomba de efeito retardado?
O papel das redes sociais de internet na radicalização ideológica já há alguns anos é tema de estudos acadêmicos e governamentais. As investigações sobre atos de violência praticados ao redor do mundo quase sempre apontam a radicalização via redes como estopim. A própria mecânica das redes se baseia na radicalização pura e simples, já que o algoritmo de recomendação – o comando interno que nos manda vídeos de guerra, justamente por que assistimos a vídeos de guerra – trabalha com um sistema de recompensa gradativamente mais densificado e intensificado. Isso significa que os vídeos de guerra serão cada vez mais destrutivos, sangrentos e reais, isto é, mais “radicalizados”. É o que se poderia chamar de “toca do coelho”, uma referência ao personagem Alice, de Lewis Caroll, que, à medida que “descia” no “País das maravilhas”, ficava mais maluca, mais parecida com os habitantes daquele não-lugar… Em essência, um indivíduo radicalizado enxerga o mundo por um túnel. Só existe a entrada e a luz no fim, tudo em torno é escuridão impermeável. Ele vive para chegar à luz. Tudo que contesta essa linha reta maniqueísta é visto como o inimigo a ser destruído.
Desde a derrota do governo nas eleições de outubro, uma movimentação até então inédita na república reúne milhares de pessoas em frente aos quartéis das Forças Armadas pedindo intervenção militar. Em tempos normais o que se esperaria do Ministério da Defesa seria alguma nota pública arrefecendo os ânimos e mandando os querelantes para suas casas. A rigor, o correto seria uma palavra vinda da presidência da República, mas a impressão que se tem é que a cadeira presidencial afundou nas lágrimas do fracasso. Nada, nenhuma autoridade ligada aos militares faz o menor movimento em direção à pacificação da sociedade. O adágio diz “quem cala, consente”…
Além de os responsáveis pelas instituições militares não ajudarem, há alguns dias surgiu uma carta assinada por dezenas de oficiais da reserva. Um chorume imprestável de frases feitas tão melosas quanto dúbias que aparentemente pretendia ser um libelo para algum tipo de revolução gloriosa, mas que na prática serviu unicamente para insuflar ânimo artificial nos desesperados que acampam há semanas em frente às organizações militares Brasil afora.
Mas, por que os militares? A resposta óbvia é que eles são os que detêm o monopólio da violência, e o que esses sediciosos revoltados buscam é a ruptura da ordem democrática e o estabelecimento de um Brasil mítico estratificado que só existe no túnel de realidade deles. Só é possível uma mudança abrupta na sociedade por meios violentos – isto é o núcleo significante da palavra “revolução”. Por isso, não acampam em frente ao Congresso Nacional ou em frente às igrejas. Essas pessoas querem que o Exército seja o “Deus ex-machina” de sua causa.
Outra resposta não tão óbvia pode ser a atração que o militarismo exerce sobre essas pessoas, o que em ordens religiosas é chamado de “carisma”. O fascínio que o militar projeta sobre pessoas de mente simplória é exatamente a possibilidade de se fazer do radicalismo um modo de vida. A ideia de que o soldado é uma máquina de obedecer e comandar, a despeito de qualquer análise mais profunda, encaixa-se perfeitamente na visão de mundo desses que buscam um mundo idílico em que não há nuances, matizes ou meios tons, mas apenas o preto e o branco, o rico e o pobre, o homem e a mulher, o certo e o errado, a direita e a esquerda.
O silêncio culposo que emana dos portões dos quartéis é um desserviço que prestam as altas autoridades militares da República em momento tão surreal quanto delicado. Num joguinho adolescente de sedução, iludem os golpistas, fingindo serem amazonas recatadas que aguardam uma ordem que venha talvez do céu em meio às nuvens para que “virem o tabuleiro” e mantenham as coisas como estão.
O governo morre em janeiro; o atual mandatário será uma lembrança incômoda a ser esquecida tão logo venha o carnaval; mas serão necessários mais trinta anos para que os militares se descolem da imagem tosca e radicalizada que aceitaram ostentar para justificar uma aventura passageira. Mas, isso é uma interpretação pessoal sujeita a erros… Talvez não seja uma imagem, talvez eles sejam exatamente e nada mais do que isso. Que venha o ano do Coelho…
JB Reis
https://linktr.ee/veteranistao
_____________
P.s.:
Logo após terminar de escrever este texto, deparei-me com uma filmagem em que o presidente atual, ao lado de um general, discursa improvisadamente para apoiadores no gramado do Palácio do Planalto. Sem microfones, sem assessoria de imprensa, sem repórteres. Um arranjo mambembe, bem aos moldes do que foram os quatro anos dessa administração cacocrática. Um declive suave, uma plateia delirante, um riacho falso, simulacro de um Rubicão imaginário… Este (derradeiro?) discurso que, conquanto seja muito similar à narrativa xaropada de sempre, pareceu-me o mais acintoso. Nenhum aceno ao bom senso, quase nenhum vislumbre de racionalidade. Apenas vitimismo piegas e rancor onidirecionado. Uma frase me chamou a atenção: “vocês são cidadãos de verdade.” Eis o fruto temporão da radicalização militarizada: o elitismo. Mesmo que pareça aos que estão de fora algo tresloucado, “coisa de bolsomínion”, na verdade isso ecoa em certa medida uma coisa que ouvi muitas vezes na vida militar: “nós não somos melhores nem piores, nós somos diferentes”. Uma fronteira mentirosa posta entre um tipo e outro de pessoas. Isso é uma divisão e tanto. Lembra também o que Recep Tayyip Erdoğan, ditador turco, sempre mencionou para suas massas radicalizadas, aquilo que ele chama de o “povo real”. Realmente já está passando da hora de aterrar o Rubicão de uma vez por todas.