Uma advertência necessária
“O costume e a veneta do comandante, e não um código estabelecido, determinavam a disciplina no Exército.” (Frank McCann, Soldados da Pátria)
Como exemplos clássicos de traições envolvendo as baixas patentes da profissão militar particularmente destacam-se a Guerra do Paraguai e a Revolta da Chibata. Há outros episódios, não tão radicais, mas igualmente notáveis. Após um vislumbre dos fatos, que mais envergonham do que explicam, um aviso necessário deve ser dado aos militares de hoje e de amanhã, que estão vendo a história passar por cima deles.
No primeiro exemplo, a “nossa” grande Guerra, toda a canalhice e baixeza da elite político-militar revelou-se à luz do dia para apreciação de todos. Impossível sumarizar tanta torpeza institucionalizada em tão poucas linhas, mas em nome da clareza e da desmistificação do passado é preciso tentar. Em linhas gerais, escravos (lavradores, calafates, alfaiates, vaqueiros) foram “libertados” pelo poder público para serem mortos numa guerra em defesa de um país que sempre lhes negou a liberdade. O quanto de cinismo mórbido havia nessa decisão levada a efeito pelos representantes das “elites” nacionais ainda será objeto de estudo da psicologia social.
Na Revolta da Chibata, evento que se a Marinha do Brasil pudesse apagaria dos livros de História, algo semelhante se deu – mas com uma volta a mais do parafuso. Os amotinados, que já eram militares profissionais, com anos de carreira – alguns inclusive elogiados por especialistas internacionais pela condução primorosa das naves de guerra durante o sítio na Guanabara, sendo que seu líder era um cabo – foram atraiçoados após a publicação da anistia ampla dada pelo Governo. A maioria foi presa, alguns mortos e todos foram desonrados. Aqui pode-se ter um vislumbre de como os homens que representam o Estado brasileiro se esmeram em desprezar a palavra dada às bases militares, mesmo que escrita.
Em 2001 Fernando Henrique Cardoso jogou a primeira pá de terra sobre a carreira militar. Bem ao estilo antigo “libertar para morrer” e “anistiar para matar”, FHC guilhotinou vários direitos da classe. Um militar que trabalhou na área de inteligência (que, para quem não sabe, sabe tudo) confidenciou-nos uma vez que o taifeiro que servia o cafezinho naquela oportunidade confidenciou a ele que, prestes a assinar o papel, o Presidente teria questionado os três Comandantes militares “é isso mesmo que vocês querem!?”. Quem não foi prejudicado pela nova lei? Quem estava na reserva ou estava na ativa, mas já tinha tempo para se aposentar – isto é, pelo menos todos os generais, almirantes e brigadeiros. Daí para baixo, todos que estavam na ativa no momento foram prejudicados proporcionalmente. Quanto mais longe da aposentadoria, mais a luz no fim do túnel lembrava o farol de uma locomotiva.
Um militar da reserva muito conhecido e respeitado por sua aguerrida defesa da revisão do PL 1.645 em 2019 revelou em grupo fechado que, de acordo com as palavras de uma fonte do Senado Federal, os generais infiltrados no governo atual fizeram todo o possível para que o acordo entre Governo e Senado não fosse cumprido, perpetuando assim a quebra da paridade ativa/reserva para milhares de inativos, situação que já se arrasta por três anos.
Após o testemunho da História, que grita mais do que fala, resta uma advertência incômoda, mas necessária, aos componentes das categorias de base das três Forças, maioria mais do que absoluta dos contingentes. É preciso entender que a profissão militar não é um bloco indiviso. Há topo e base, que como se sabe, são água e fogo. Não só não se misturam, como são autoexcludentes. O topo, intoxicado pela proximidade do poder político, sofre de miopia seletiva, e jamais olha para a base, exceto pelos motivos já descritos acima. A base, a intervalos mais ou menos regulares, sempre pode ser objeto de descarte, seja por toda a cúpula das instituições, seja por meia dúzia de generais que ciclicamente tomam as rédeas do poder político e usam a máquina pública para fazer valer sua visão tarada de mundo, que nos quartéis é lei.
Os que são hoje as vítimas dessa traição mais recente, eram jovens em 2001. Os que escaparam da foice de 2019 serão grisalhos em 2040. A sorte dos abusos passa também pela conduta dos abusados. O atual topo da hierarquia demonstrou que o respeito que a instituição militar nutre pela base é relativo. Mesmo os que “se safaram” do recente corta-corta, que foi a reestruturação da carreira, viram que uma porta incerta se abriu. Centenas de milhares de militares, seus dependentes e pensionistas soltos num Kalahari de feras oportunistas. O que hoje é certo, amanhã pode ser choro.
A via política é a saída por excelência. Dentro do que (ainda) é facultado a esses homens e mulheres pelo Estado de Direito urge a formação de uma tardia, mas indispensável conscientização política. Não basta o voto, ele é só o primeiro passo. Urge que essa categoria multifacetada, plural, rica sob tantos aspectos se organize e se erga desse âmbito restrito de subclasse profissional e se imponha no cenário político nacional como categoria destacada, de valores tão nobres e representativos do povo, como qualquer outra. O “Comando dos Sargentos” precisa “reencarnar”.
JB Reis
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