Normalmente não escrevo em primeira pessoa. A tendência desse tipo de discurso é resvalar para a autopromoção e, mesmo sem querer, propiciar cultos de personalidade. Essas coisas que a muitos são caras eu as vejo como sérios embaraços à liberdade de expressão. Não quero ser “formador de opinião” nem muito menos “voz” de alguma coletividade. Eu mesmo não tenho opiniões formadas. Quanto mais opiniões, mais turvo fica o pensamento. E isso é pior do que não ter voz nenhuma!
Para dar uma satisfação aos que me acusam injustamente de ser parcial, ou pior, de ser “bolsofóbico” resolvi escrever este texto. Dentro de certos limites é importante ouvir o que as pessoas pensam sobre nós. Não é razoável que eu só escreva sobre os aspectos negativos do presidente Bolsonaro. Ninguém é totalmente ao céu nem totalmente à terra. E eu julguei que preciso flexibilizar os meus conceitos… Deve haver, sim, pontos positivos, e pessoalmente considero que haja algum reconhecimento, eu poderia até chamar de dívidas, que nutro sinceramente pelo ex-capitão.
Sob esse ponto de vista, o que se segue são ideias nucleares permeadas aqui e ali por considerações particulares baseadas, estas últimas, nos fatos observados nos últimos três anos desse governo que aí está.
Por isso, por mais que o que lerão nas linhas seguintes sejam “opiniões” pessoais ou visões particulares de quem escreve, não tenho dúvida, serão opiniões e visões de muitos, talvez de quase todos, que viveram o que eu vivi na caserna e que (ao contrário do que a intelligentsia brasileira prenunciava, isto é, que os militares tomariam o poder, na verdade os militares é que) foram engolfados pelo tsunâmi político que arrebentou os portões dos quartéis.
O inimigo interno
Há (sem exagero) tantas nuances na profissão militar que, apesar de haver uma paranoica uniformização de conduta, é possível encontrar hoje, numa amostra despretensiosa, militares que passariam perfeitamente por burocratas almofadinhas ao lado do soldado clássico mais estereotipado. E isso nem sempre pode ser creditado a um “desvio” individual de um padrão exigido pela caserna. Às vezes, as inúmeras especialidades, quadros, armas, atraem o homem ideal para desempenhar aquela função específica. Em geral, o preconceito (entendido como algo execrável na vida civil) no militarismo é não só bem visto como é também imprescindível para uma boa “convivência”, e até mesmo, em casos extremos como um conflito, pode ser a diferença entre a vida e a morte. Exemplo. As infinitas segmentações hierárquicas, os degraus na carreira – do soldado ao general –, não são apenas sinais de vaidade profissional. São também marcos institucionais limitadores de ação e sinalizadores de autoridade. A vida militar é antes de tudo uma preparação diuturna para a guerra. Isso é um fato inconteste. Um soldado precisa reconhecer imediatamente, com um mínimo dispêndio de tempo e energia, quem “vem ao longe”. Se é inimigo ou não. Se é oficial ou praça. Se é seu superior ou inferior. Neste último caso, sendo amigo, ele, o soldado, até então, arisco, relaxa, baixa a guarda e saúda o interpelado com mais ou menos familiaridade, a depender se é seu superior ou não. Extrapolando o exemplo, pode-se dizer que a vida militar é simples, não por serem simplórios os militares, mas por ser ela um bem precário. A qualquer momento pode-se perdê-la, portanto a interpretação da realidade deve ser célere, sob pena de se cometer erros fatais.
A primeira dívida que tenho para com o presidente da República é ter sido eu desiludido quanto ao procedimento de identificar o inimigo que “vem ao longe”. O motivo principal que me fez votar nele em 2018 foi justamente o “bom” preconceito incutido em mim pela doutrina militar. Por que me recusaria a votar no deputado que era capitão do Exército? Havia uma identidade entre nós. Mesmo que eu fosse enamorado de alguma ideologia política (coisa que não era!) oposta ao que ele propagava, a “genética”, a familiaridade, a camaradagem entre soldados, ainda assim, teria falado mais alto.
Os trinta anos de submissão a regulamentos draconianos, que me fizeram enxergar na consciência política crítica um anátema, colaboraram para turvar ainda mais o meu julgamento tendencioso, e não me prepararam para o desprezo e a ingratidão com que o presidente tratou e trata os veteranos prejudicados pelo seu governo. Mas o que é um voto? Por mais que seja endeusado, sob a ótica da democracia, um voto não passa de um tiro no escuro, um cheque em branco. Se não tivesse votado em quem votei, estaria escrevendo isso da mesma forma. Hipnotizado pela suposta identificação com o capitão de exército, e toda a mitologia que a vida militar carreia, baixei a guarda e passei um cheque em branco para o deputado, que de militar confiável só tinha a identidade vencida.
Falta guerra
Outro motivo que me leva a ser grato ao presidente foi ter ele me proporcionado confirmar suspeitas que sempre tive durante minha vida e experiências na caserna. Sempre desconfiei que a classe alta dos quartéis, os condutores e líderes militares, enxergavam-se como destacados da tropa. Como se fossem uma elite dentro da elite. Não resta dúvida que as funções de comando exigem maior entrega, maior dedicação e estudo. Isso é inquestionável, pois que se alicerça sobre o próprio princípio hierárquico das Forças Armadas.
A mesma hierarquia que faculta aos comandantes os poderes legais, como um fractal, replica-se ao infinito, sem necessariamente se fragilizar, até chegar ao GC (grupo de combate), a menor unidade militar além da qual o comando se pulveriza em vontades individuais. O jovem sargento, responsável por dois cabos e seis soldados, ao assumir o comando dessa humilde subunidade, representa (e esta palavra tem um peso diferente no meio militar) o oficial comandante de mais elevado posto. Portanto, a honra que é devida ao comandante desse simples GC é potencialmente a mesma honra que se deve ao comandante de toda a força armada a que pertence o GC. Assim diz a teoria. Mas nada neste mundo está isento de corrupção e a última guerra que vivemos foi em 1870. Os militares brasileiros, em sua maioria, são burocratas fardados, e os generais, por sua vez, converteram-se em estranhas criaturas híbridas, mistura de político bonachão e rambo de asilo.
A reestruturação criada pelos generais e transformada em lei pelo presidente, relegando milhares de praças veteranos, inclusive oficiais (que foram graduados na maior parte da carreira), a um lugar de destaque debaixo do tapete da história, serviu, não digo isso sem um laivo de tristeza, para confirmar o que sempre pensei sobre a principal carência das Forças Armadas brasileiras. Não faltam homens, não faltam armamentos, não faltam recursos, não falta salário. O que faz uma falta tremenda é guerra! Os generais iluminados que, hipotecando a palavra “militar”, endossaram a plataforma política de Jair Bolsonaro, levaram de roldão milhares de outros soldados que muito provavelmente não queriam ver sua profissão associada a políticas de nenhuma espécie – eu não queria! Esses, que praticamente legislaram em benefício próprio, esquecendo-se do dever de honra que tinham para com milhares de militares de baixa patente, realmente precisariam ser alocados num campo de batalha qualquer, e ter suas vidas nas mãos de um simples Grupo de Combate comandado por um simples sargento – nas memoráveis, porém recentes, palavras de um deputado general: um sargento “preguiçoso”. Talvez, então, com a vida mantida pelo delicadíssimo fio da camaradagem, esses imponentes generais, almirantes e brigadeiros tivessem a experiência viva do que é a lealdade, que é muito mais do que um brocardo antigo e desusado pintado numa parede de escola militar.
Armas e outras mentiras
Que político mente como quem respira, de tão folclórico que é, tornou-se verdade evidente por si mesma. Se entre um ganancioso e o poder existe uma latrina cheia de calúnias, pode crer que ele vai mergulhar e sair do outro lado sorrindo para a foto. O que nos resta é a eterna e humilhante escolha do “menos pior”, do que “rouba, mas faz”, do “ruim com ele, pior sem ele”.
Depois da ressaca da maré vermelha petista, o cruzamento entre oportunidade e oportunismo criou uma fenda inusitada por onde Bolsonaro entrou. Mas ele não teria cruzado essas dimensões políticas se não estivesse envelopado pela aura “sacrossanta” das Forças Armadas. Acho que hoje não resta dúvidas de que ele foi ungido pela cúpula militar.
Bolsonaro mereceu o apelido de “mito”, mas não pelas tiradas burlescas que proferia em campanha. Ele foi até agora o político mais “herege” que já concorreu ao cargo de Presidente da república, mas não no bom sentido da palavra, mas por que simplesmente deu um passo além nesse teatro de tesouras que é a politicagem brasileira. Ninguém até então havia, por exemplo, prometido não se unir ao centrão “fisiológico” (não sei o que é isso… talvez um nome bonito para uma máfia eleita?); Bolsonaro prometeu. E, porque a realidade é dura e teima em nos desiludir, obviamente não cumpriu a promessa. Está, agora, em simbiose profunda com figuras políticas, algumas de passado suspeito e outras comprovadamente pilantras. Nada como uma promessa que não se pode cumprir. Afinal, como ele mesmo disse, “eu sou filho do centrão”. Há, inclusive, um general grisalho que regravou um samba com este nome… Eis aí mais um débito que tenho com o presidente. Nem todo mundo que usa farda é mais confiável do que um boneco de madeira falante.
Em 2018, Bolsonaro disse que a bandeira do Brasil “jamais [seria] vermelha”. Três anos depois, os direitistas de pedra estão sendo lentamente defenestrados do Planalto, sendo que o chanceler anti-China (Ernesto Araújo) foi demitido em 2021 e (talvez por isso) o presidente recentemente inaugurou mais um consulado chinês, bem aqui no nosso bananal.
Discursos e mais discursos inflamados, empolgantes, sobre armas, sobre liberdade e sobre um suposto “povo armado, que não será escravizado”. Coisa que contrasta de forma gritante com a realidade, se levarmos em conta um discreto documento interno de uma das Forças Armadas, que estabelece restrições pesadíssimas e mesmo descabidas ao porte de armas por parte de milhares de militares da reserva. Se o eleitorado militar – que conforme diz a lenda, é a base maior de apoio ao presidente – tem restringidos os meios de acesso às armas para autodefesa, que facilidades terá o público comum? Ou os comandantes militares são desobedientes e não cumprem as ordens do presidente ou o presidente realmente não quer facilitar a vida dos armamentistas e nada mais faz do que lançar palavras ao vento! Quem poderia imaginar isso… do “mito”!?
Reportagem recente do Correio Braziliense, diz que os militares estariam ensaiando uma saída discreta da sombra presidencial. Como há alguma chance de que a reeleição não aconteça, já estariam colocando o pé esquerdo em outra canoa enquanto não sabem bem onde porão o pé direito. Os alegados “militares” obviamente não passam de alguns membros da cúpula, que, para o grande público, são os únicos seres pensantes na caserna. Mas, sabemos que não é assim. Esses senhores da guerra burocrática já chegaram onde queriam desde o governo de Fernando Henrique. E chegaram em grande estilo, isto é, sozinhos, deixando grande parte da tropa para trás. É natural que estejam mesmo pensando em se desvincular daquele que representava uma chance em mil de chegarem ao teto do funcionalismo (a tão sonhada isonomia, só para os generais, claro!). Tendo o presidente servido aos seus propósitos financeiros, o que se pode esperar de alianças espúrias? Descarte, traição e cumprimento da destinação constitucional. À tropa que, por sinal, desde sempre carregou Bolsonaro às costas, e hoje paga o preço desse erro, é indiferente a quem terá de obedecer. Afinal de contas, se há uma coisa na vida militar que não muda é que manda quem pode, obedece quem tem juízo, e vota em traidor quem gosta de apanhar.
JB Reis
https://linktr.ee/veteranistao