Pouca gente menciona, mas a marujada do início do século XX não queria só o fim dos castigos físicos. Sempre pediram oportunidade para estudar, uma escala de serviço mais humana e o afastamento dos oficiais violentos. Mas, as reclamações eram vistas como coisa de indisciplinados, de revoltados.
E jamais a sua luta foi oficialmente reconhecida como razoável, coerente.
Naquele tempo se achava que homens com estrelas nos ombros eram os salvadores da pátria e que suas decisões estavam sempre corretas. A própria sociedade civil os via como uma espécie de deuses da sabedoria.
Algo semelhante aos dias atuais?
Por mais obvio que seja que rejeitar castigos físicos é algo natural, louvável, o governo Brasileiro e as Forças Armadas se negam a aceitar João Cândido como um verdadeiro herói.
Na minha opinião sua estátua deveria estar na frente do Primeiro Distrito Naval e não escondida naquele canto da Praça XV. O fato da Marinha muito recentemente ter colocado todas as dificuldades para que a homenagem aos marujos injustiçados fosse colocada nas proximidades do Primeiro Distrito naval é uma confissão clara de que a elite da força naval intimamente ainda rende homenagens ao tipo de oficial – racista, autoritário e elitizado – que trata subordinados como se fossem animais, sem qualquer direito e incapazes de pensar.
No Brasil ao subalterno é negado o direito de pensar, de “iluminar a sociedade” no que diz respeito a apresentar sugestões para melhoria das diversas situações enfrentadas. Uma situação interessante me vem a mente nesse momento, no que diz respeito a luta por independência temos dois grande heróis, um deles era membro da elite, um príncipe, e outro era um graduado, um alferes, que é uma espécie de suboficial. Alguns dizem que é um oficial com posto abaixo de tenente.
O alferes foi morto e esquartejado, o príncipe foi transformado em rei. A diferença de tratamento dado entre elite e populacho se evidencia desde cedo em nosso país, onde – infelizmente – as grandes mudanças raramente são construídas pelo povo.
Só quem pode ‘iluminar a sociedade” no que diz respeito a questões militares, injustiças na caserna e … projetos de lei elitistas, é a elite FARDADA, é a opinião de um general que por algum tempo falava em nome do presidente Jair Bolsonaro. Um porta-voz fala em nome de alguém. Portanto, seria essa a opinião de Bolsonaro? Fica a pergunta.
Se a CÚPULA DAS FORÇAS ARMADAS decidir se calar a sociedade permanece no ESCURO, é o que está implícito na declaração de Rego Barros.
Rejeitando um projeto de lei
Nos últimos meses vemos uma grande movimentação de militares da reserva tentando levar até o Presidente da República suas contestações contra uma lei que acreditam que os prejudica. Como em 1910, graduados não têm voz, suas associações não são reconhecidas e as cúpulas militares se declaram como os únicos que têm o direito de discutir as carreiras, ainda que nas Forças Armadas existam duas carreiras, uma de oficiais e outra de praças.
Depois de tantos casos complicados, como o 28.86% e as recentes lutas para que generais no governo recebam acima do teto constitucional, poucos acreditam que os primeiros realmente zelam pelos segundos.
Lideres de associações e grupos independentes formados nas redes sociais, que viram ao longo dos últimos anos o Clube Militar do Rio de Janeiro atuar politicamente de forma intensa, convocando manifestações de oficiais associados e agindo em defesa da necessária mudança no país, têm que agora digerir determinações que indicam que militares – mesmo na reserva – não podem de forma coletiva pleitear direitos.
Normas que batem de encontro umas com as outras frequentemente são invocadas as pressas para proibir militares da reserva de se manifestar politicamente. O código Penal Militar diz uma coisa, os regulamentos dizem outra e a lei 7.524 refuta os dois, permitindo ao militar da reserva se manifestar sobre qualquer assunto, exceto – obviamente – de caráter sigiloso.
Sempre que posso relembro nossos leitores de uma magistral colocação feita por Barbosa Lima Sobrinho em 1963, que nunca esteve tão atual:
“… não há como entender, ou justificar, que generais possam ter direito a manifestações políticas e que o mesmo direito seja negado aos suboficiais, de modo a que sejam presos aqueles que pretenderam seguir os exemplos de seus superiores hierárquicos (…) Se a tropa se convence de que, no plano político, os superiores gozam de um direito que é recusado aos sargentos, a conseqüência será … a formação de um sentimento de animosidade, de um conflito que, por não se manifestar de imediato, não será menos perigoso, como uma força latente de desagregação (…)” (BARBOSA L. SOBRINHO, in O Semanário, 23 a 39-5-1963, p.5).
No projeto de lei apresentado e aprovado – entre tantos absurdos – havia um item curioso, derrubado pela intensa ação dos graduados. Por mais que os regulamentos cobrem que todos os militares representem bem as forças, o Ministério da Defesa teve a desfaçatez de inserir no PL 1645 uma nova gratificação de representação que só alcançava os generais. Estariam todos os demais isentos de ser obrigados a bem representar as Forças Armadas? Note-se que representar envolve muito mais do que somente vestir-se bem. Representação – determinação para todos segundo o ESTATUTO – engloba comportamento em público, modo de falar, higidez financeira etc.
Alguns itens enquadrados como má representação
– Contrair dívida ou assumir compromisso superior às suas possibilidades, que afete o bom nome da Instituição;
– Esquivar-se de satisfazer compromissos de ordem moral ou pecuniária que houver assumido, afetando o bom nome da Instituição;
– Ter pouco cuidado com a apresentação pessoal ou com o asseio próprio ou coletivo;
– Portar-se de maneira inconveniente ou sem compostura …
Estariam todos – exceto os generais – dispensados disso tudo? Felizmente, por conta da intensa luta dos graduados no Congresso Nacional, essa vantagem injusta foi derrubada, os cofres públicos foram poupados de mais uma régia vantagem concedida a categoria já abastada.
Indo ao Parlamento
Alguns – que se acham superiores – insistem em ver como afronta a hierarquia e à disciplina o fato de sargentos e suboficiais levarem até os parlamentares as suas queixas. Ora, pessoalmente, como militar da reserva, sociólogo e jornalista, enxergo mais como afronta contra a hierarquia o fato de um general da ativa – ocupando cargo civil e falando em nome de um Presidente da República que sempre incentivou as associações de graduados a lutar por melhorias salariais – como menciono acima – se dirigir à grande mídia se referindo a seus subordinados como “estamentos muito inferiores”, que por isso não teriam o direito de levar a sociedade e parlamento a discussão sobre um projeto de lei que os afeta diretamente.
Lembro-o que projetos de lei são discutidos por parlamentares, eleitos pelo povo. E que – portanto – o povo têm o direito de opinar sobre as suas decisões.
A afirmativa que diz que os chefes sabem o que é melhor para seus subordinados é derrubada vez por outra, sempre que – com a ajuda da justiça – se revelam as inúmeras arbitrariedades e erros cometidos por aqueles que ocupam os luxuosos gabinetes, nos andares mais altos.
As próprias medalhas concedidas para mensaleiros – cassadas só após muita pressão popular – são também grande prova de que generais nem sempre acertam. A negativa recente da MARINHA em informar quais foram as ações relevantes que justificam condecorações para magistrados e políticos é coisa considerada no mínimo esquisita. A Força disse – após muito cobrada pela Revista Sociedade Militar – que os papeis que descrevem as ações que justificam as condecorações foram “descartadas”!
Chefes militares devem ser reconhecidos sempre como tais, as instituições não subsistem sem a hierarquia e sem a disciplina. Mas, devem ter também a humildade de reconhecer que as instituições precisam evoluir – não só em aspectos tecnológicos – mas também no trato com o pessoal.
Infelizmente. E muito infelizmente mesmo! Quase todas as mudanças para melhor no que diz respeito a humanização de nossas instituições chegaram após lutas como as de João Cândido e de muitos outros heróis anônimos que em algum momento ousaram ir contra o senso comum.
Está na hora de mudar isso, definitivamente a categoria precisa de representantes nas casas legislativas. Se no passado praças eram castigados com a chibata, hoje – embora não existam mais as “rubras cascatas” mencionadas por Bosco e Aldir Blanc – graduados e suas famílias – apesar de ser literalmente quem realmente toca o barco – são ainda relegados a segundo plano, tratados como uma espécie de sub-cidadãos, sem direito a opinar sobre suas próprias vidas e muito menos de lutar por melhores carreiras e salários.
Seria isso uma nova espécie de chibata?
Hoje não é mais necessário tomar navios, pegar em armas ou ir contra a legislação vigente. A batalha se dá no campo das idéias, da argumentação, contra as negativas, caras feias de superiores hierárquicos e até mesmo de pares que nem sempre discernem muito bem o que e legal do que é ilegal.
Um salve, um Bravo Zulu, um brinde e nossa melhor continência para todos que ousam ingressar em lutas inglórias, bem intencionados e em favor daquilo que acreditam.
Afinal, aquele que hoje é reconhecido como o Rei dos reis foi quem empreendeu a mais inglória de todas as lutas.
Robson Augusto é Militar R1, Cientista Social e jornalista – Texto cedido pela Revista Sociedade Militar. No material o autor, como jornalista e sociólogo, discute a legislação militar, usos e costumes que imperam nas forças armadas brasileiras.
NÃO DEIXE DE VER ABAIXO LETRA ORIGINAL E INICIALMENTE CENSURADA DE Mestre Sala dos Mares – homenagem a João Cândido Felisberto (Almirante Negro).
Texto inicialmente publicado na Revista Sociedade Militar, revisado e adaptado para o Portal Militar