“Gatinho de Cheshire, poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para sair daqui? – Isso depende bastante de onde você quer chegar, disse o Gato. – O lugar não me importa muito…, disse Alice. – Então não importa que caminho você vai tomar, disse o Gato.”
Lewis Carrol
1º Motivo – Histórico
Nunca concordei que o feriado da Independência fosse suficientemente representativo da brasilidade, da nacionalidade. A independência do Brasil foi mais um drama dinástico familiar do que propriamente o soerguimento consciente de uma nação. O Brasil não foi resultado da construção popular, mas foi criado artificialmente por um Rei e sua corte, fugitivos da Europa e exilados no trópico. O Brasil não ascendeu naturalmente à categoria de Estado, foi um Estado alienígena que desceu até o Brasil. A corte portuguesa foi um upgrade fenomenal para a colônia. Um download pesado de uma visão de mundo europeia, com uma cultura milenar que foi aportada na secular colônia fornecedora de matéria prima. O grito (se é que foi um grito, mesmo!) no Ipiranga sempre me pareceu mais um “sai prá lá” do Príncipe Regente para o Velho Mundo. Não acho que para o pobre povo brasileiro fizesse alguma diferença até aquele momento ser Reino Unido ou ser Brasil. Quem se emancipou foi o Pedro de Alcântara. Como sempre, a história é contada do ponto de vista dos ricos, que logo transformaram um acontecimento pessoal numa independência nacional. Uma data que evocaria mais perfeitamente a união dos diversos tipos brasileiros (até aquela época, o índio, o branco e o negro) foi a batalha de Guararapes, que infelizmente foi abocanhada pelo Exército Brasileiro e se tornou o dia do Exército.
2º Motivo – A Tutela militar
Não é errado que entre os militares o culto à Pátria seja tão pujante, muito mais do que em qualquer outro setor da sociedade. É da natureza da guerra que os soldados empenhem a própria vida em defesa da nação, e em alguns casos isso não aconteceria tão bem se eles fossem meros mercenários. O amor à Pátria é o ímpeto maior de quem vai encarar a morte de peito aberto. Mas no Brasil, o patriotismo tem uma relação um tanto promíscua com os militares. Depois do golpe da primeira República, a classe armada se apropriou do patriotismo – algo com que a elite deposta não se importava tanto, já que na monarquia tudo gira em torno do soberano e não do Estado – e daí para diante fez dele seu refém. Os anos passaram, os estados nacionais se consolidaram, e no Brasil o patriotismo seguiu sendo tutelado pelos militares. Não é possível impor o amor, seja por um indivíduo, seja por um território ou cultura. Enquanto o amor não brota de um coração sincero, ele nada mais é do que violência de veludo. Quem diz que vai à guerra “pela pátria”, vai porque ama ou vai porque teme a corte marcial? Por isso sou ressabiado com esse patriotismo de baioneta. Da ditadura militar ficou-me aquele cata-vento em forma de suástica e o dístico grotesco “Brasil, ame-o ou deixe-o”. A ideia que passam é de que os militares seriam os intermediários naturais do patriotismo, uma espécie de super-raça, que tem o que a maioria não tem. Discordo disso. Cada brasileiro, à sua maneira, pode ser tão patriota quanto qualquer um.
3º Motivo – O Vírus chinês
Desde que entrou o Ano do Rato em janeiro de 2020, a pandemia da peste chinesa já levou muita gente para o outro lado da vida. Aproveitando-se da coincidência de que milhões de cidadãos chineses voltariam à amada “terra do meio” para comemorar o evento, trançando pelo globo, levando e trazendo seus fluidos corporais, o vírus vermelho colonizou o planeta azul. Só aqui neste país, atrasado como ele só, já morreram mais de quinhentas mil pessoas, entre bolsonaristas, petistas e outras criaturas fantásticas. Com uma taxa de letalidade menor do que 3%, a chance de que eu vá morrer de “coronga” é muito, mas muito baixa. É mais fácil morrer de raiva do governo… Mas se há uma (01) chance de morrer disso, ela com certeza é dezenas, centenas, até milhares de vezes maior numa multidão. É interessante não perder de vista que os principais estimuladores desses movimentos ou não participam deles ou, se o fazem, não se expõem tanto quanto a massa acéfala. Se as Forças Armadas que são “faca na caveira” não vão, não sou eu que vou testar essa roleta chinesa. Porque Bolsonaro estimula aglomerações, chamam-no de genocida. Não concordo. É um termo muito pesado e injusto. Talvez uma palavra devesse ser inventada: “bobocida”… Ainda acho que é mais inteligente “não tentar o Senhor, meu Deus” e morrer pela idade mesmo.
4º Motivo – Inversão de valores
Estão dizendo por aí que a manifestação seria pela liberdade de expressão e outras garantias constitucionais básicas, que pessoas estão sendo presas sob condições ilegais, etc. É óbvio que ninguém quer viver num estado autoritário, muito menos ditatorial, seja de direita ou de esquerda. Mas, se formos um pouco atentos, vamos observar que no Brasil real as necessidades do povo pobre (a maioria, ninguém se engane) há séculos permanecem as mesmas e até hoje não foram plenamente atendidas nem pela direita nem pela esquerda. O que é “básico” para o brasileiro desde sempre? O que vem antes da liberdade de expressão (que importa, sem dúvida) até mesmo na Constituição da República? A “dignidade da pessoa humana”! Há uma sutil inversão de valores nessa pauta do sete de setembro. O povo pobre está sendo preso por falar o que não deve? O povo pobre está sendo preso por atacar a democracia de papel e suas instituições coalhadas de corruptos? Não! O que o povo precisa antes de se expressar é saber o que expressar, o que não se consegue sem escolas, sem alimentação adequada, sem estabilidade econômica, sem emprego. Não seria mais coerente com a situação atual (que mudou pouco em quinhentos anos) sair às ruas (já que querem tanto se expressar) e cobrar do governo educação, emprego e saúde? Quem pode se expressar de barriga vazia? O que é mais preocupante para o povo pobre (não falo aqui de mauricinhos de twitter), se o regime político é canhoto ou se o preço do arroz subiu? Quem será defendido nessas manifestações? Uma patotinha malcriada de políticos ouriçada pela chance de se emporcalhar no poder público ou o povo desassistido e esquecido desde sempre?
5º Motivo – Por quem os sinos dobram?
Existe o fogo, os que ardem nele, e os que apagam o fogo com gasolina. Vejo os novos militantes, políticos, jornalistas famintos, “conservadores” revolucionários (!), artistas decadentes convocando “o povo” para defender as liberdades. Mas, onde estão eles? Os jornalistas estão em Nova Iorque, em Miami, em Washington. De lá, onde o dólar vale 1 dólar, e não 6, execram a “ditadura da toga”, mas não reclamam do preço da gasolina. Os políticos estão encravados feito carrapatos no boi estatal. Não pagam o que usam, não pagam o que comem, não sabem o que é mensalidade escolar. Instigam as pessoas a fazer algo que eles mesmos não têm direito de fazer. Tentam fabricar um movimento popular a partir de factoides potencializados pelas tecnologias atuais. E onde está o “grande” estadista responsável por tudo isso? Encastelado num palácio quadrienal, dissimulando bravatas diariamente, como quem brinca de roleta russa com a cabeça dos outros. Posando de deus tribal, diz que precisa que o povo (essa entidade sem nome e sem cérebro) peça sua poderosa intervenção e que as Forças Armadas (pobres coitados), que, segundo ele, estão ao seu lado, saberão o que fazer. Fazer o quê? Por que ele não fala?? Eu não sou moleque de recado. Não vou às ruas para “falar” por alguém a quem sobra truculência, mas falta coragem.
6º Motivo – Microditadura
Quem vai às ruas no dia sete vai se manifestar contra uma ditadura, que estaria vindo do Poder Judiciário. Quando penso em alguns homens públicos, o que me vem à mente são aquelas quadrilhas de gângsteres dos anos vinte. Às vezes acho que estão (as três cabeças da hidra estatal) constantemente dividindo e redividindo os territórios entre eles, não só geográficos (isso já foi feito), mas principalmente territórios de influência. A ilusão básica de quem ataca a “ditadura” judiciária é achar que pode com isso ganhar um passe livre do Executivo, barganhando, comerciando ao estilo, “veja, eu lutei por você, então eu quero liberdade”. Mas isso significa o que exatamente? Que, caso o Executivo instaure uma ditadura, os que foram à passeata serão poupados pelo Governo? É uma coisa muito esquisita os devotos (já não estamos mais no nível de apoiadores!) do Presidente manifestarem-se contra a ditadura, sendo que o Governo tem mais de seis mil militares em sua administração direta. Quantos regimes de exceção foram instaurados por juízes? De qual das três cabeças tenebrosas do nosso Leviatã pode realmente brotar uma ditadura? Ditadura não é apenas fim da liberdade de expressão. Falta de diálogo também pode ser um indício de autoritarismo e um comecinho de ditadura. Então, pergunto: qual, das três cabeças, não conversa? Quem, entre elas, adotou a glasnost invertida dos “cem anos”? Ora, tudo que quer esconder ou não quer mostrar, o Governo chancela com o sigilo de cem anos. Medalhas militares dadas a políticos, processos disciplinares de generais políticos, cartões corporativos, viagens, crachás de parentes… O que é esse pano preto, senão um ditadura em ponto menor? Eu vejo isso como um mau sinal, abuso de prerrogativa, exação e isso basta para me convencer de que, se o Juiz não gosta que eu fale, o Presidente não quer que eu pergunte. A mim eles se merecem e eu não vou lutar por nenhum deles.
7º Motivo – Profissão vergonha
Por último, mas não menos importante, não posso deixar de registrar que tenho vergonha na cara. Explico-me. Em 2018, o atual Presidente me pediu um voto. Provavelmente a maior parte da classe militar votou nele. Eu não fui exceção. Todos os militares têm uma história mais ou menos comum e por isso há uma confiança compartilhada entre eles, uma identificação que automaticamente “baixa a guarda” e faz com que um confie tacitamente no outro, mesmo sem se conhecerem nos detalhes. Bolsonaro foi eleito em grande parte por essa aura de correção, que a classe inspira, mesmo tendo sido mais político do que militar. O que aconteceu em 2019? Como diz a música, ele “pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão”. O Governo fez uma reforma da carreira militar, que foi muito boa para alguns que ainda estavam na ativa a partir de 2020 e prejudicou uma multidão de uns 80 mil, entre veteranos e pensionistas. Os militares prejudicados pelo novo ordenamento legal foram chamados de “retrovisor”, de “preguiçosos e incapazes”, “baixos estamentos” e a birrinha do governo está escalando, pois além de ter sido instaurado um inquérito para apurar atividades supostamente sindicais de associações legalmente constituídas, recentemente foi noticiado que o Exército gasta seu precioso tempo camuflado monitorando a vida do pessoal da reserva e de políticos antigovernistas. Como eu poderia ir às ruas defender um governo, carregando uma mochila cheia dessas pedras? A mim é escandalosamente incoerente (para não dizer patológico) defender quem me traiu e ainda me policia.
JB Reis
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