Pílulas de verdade
“É preciso que tudo mude para que tudo continue como está.”
(Giuseppe Lampedusa)
Não há mais como esconder que o Brasil está sendo governado por uma junta militar. Não há nada explicitado, mas é de uma clareza meridiana para muitos – principalmente entre estudiosos do assunto – que o presidente da República é nada mais do que um títere de uma invisível, mas ao mesmo tempo descarada, regência de “chumbo” (infeliz anacronismo polissêmico!) que frequenta a mídia com irritante assiduidade.
Após três décadas, os militares voltaram a ser o centro da política nacional, o eixo em torno do qual gravitam um passado vergonhoso que desejam apagar e um futuro incerto no qual lutam para estar. Sucedem-se os nomes e os postos, generais e coronéis vêm e vão, mas todos eles estão se refestelando nesse banquete bizarro de atenções e ultra-privilégios, que a grande imprensa insiste em atribuir ao simplório e limitado capitão da reserva, que até ontem contentava-se em ser apenas o humilde histrião do legislativo. Por parte da opinião pública e principalmente da imprensa leiga há, não só uma percepção ambígua, como impera uma zona cinzenta de compreensão, uma ignorância crassa que precisa ser dissipada pelo bem da verdade e da própria ideia de democracia que supomos existir no Brasil. Todos os militares são militares, mas uns são mais do que os outros.
Ignorante acerca do assunto, ávida por furos grandiosos, passou despercebido da grande imprensa um detalhe a respeito do primeiro movimento feito pelo governo, lá em 2019. A reforma previdenciária, que teoricamente atingiria todos os militares, nem de longe respingou sobre a cúpula militar. Frente à impossibilidade ou talvez por incapacidade de escrutinar o militarismo em toda a sua complexidade, a opinião pública e a mídia de massa engoliram fácil a pílula azul de que os militares pagaram o seu “pedágio” tão logo assumiram (de novo) as rédeas do poder. Tiveram aumento de tempo de serviço, passaram a contribuir mais, “abriram mão” de direitos em nome de alguma baboseira neoliberal, etc.
Mas, não foi exatamente isso que aconteceu. A nata dos oficiais generais e seus apaniguados que tomaram a máquina pública federal fizeram uma cirurgia semântica na palavra “militar” e dividiram o seu significado entre “eles” e “nós”. Os militares que tiveram seus direitos estatutários aniquilados pelo novo ordenamento legal não eram os que estavam no centro nervoso do poder, mas os que estavam na periferia, isto é, o povão da caserna.
Há duas maneiras de se olhar a classe militar. Uma, a mais usual e superficial, é a que olha numa perspectiva horizontal, colocando todos os militares em linha, desde o soldado ao general, e os classifica nesse continuum como sendo uma gradação de um mesmo profissional. A outra, menos comum, justamente porque exige focalização, é o olhar em vertical. Vê-se então que a estrutura da classe é piramidal e que há dois andares incomunicáveis. Um vértice pequeno e dourado assentado sobre uma base opaca e gigantesca. Um paralelismo, que, apesar de agressivo, é bastante útil, já que pelo contraste violento deixa entrever uma interpretação desse arranjo, pode ser feito com uma sociedade escravista.
Nesta, o escravo só é sujeito de direitos na medida em que isso interessa ao seu senhor. Pois bem, uma vez presenteados com o poder de decisão (é bom lembrar que o relator da reforma militar foi escolhido pelos comandantes militares, isto é, ele era um deputado “biônico”) trataram os generais, sem muita cerimônia, de fazer valer sua verve de senhores de engenho. Deram-se um aumento real via gratificações esdrúxulas como forma de compensar as perdas que precisariam ter (para representar o teatrinho patriótico), e, sem nenhuma crise de consciência, dividiram o prejuízo coletivo com a base da tropa, ficando com os dividendos.
Mas, o deboche transbordou o mero ranço entre as categorias (oficiais e praças), ferindo mortalmente a ordem constitucional dos direitos sociais, pois, segundo a reforma, os militares temporários – que serão num futuro próximo 85% da classe – serão soldados “uberizados”, já que terão os deveres próprios do militar, mas não terão os direitos reservados aos civis em idênticas condições. Em resumo, não existe uma classe militar monolítica, como a classe artística ou a classe operária, sendo seus componentes filhos da mesma “genética”. O militar brasileiro padece de uma esquizofrenia classista. Dependendo de em qual parte do uniforme se encontram as insígnias, seu inimigo mais ferrenho pode ser a própria farda.
O tempo passou, o prejuízo se instalou nas camadas baixas das Forças, o topo dourado ficou cada vez mais distante da base, e o governo do capitão-presidente deu as costas aos militares mais desfavorecidos pela hierarquia. Ignorados pelos políticos da direita redentora, humilhados pelos generais oportunistas, eis que os praças das Forças Armadas, desorientados e divididos entre o patriotismo de bolso vazio e a traição chancelada por generais, almirantes e brigadeiros, finalmente acolheram a boia jogada pelos partidos da esquerda radical.
Notadamente, o deputado Glauber Braga, do PSOL, está dando mostras de que comprou a briga contra o governo federal. Em recente transmissão da Câmara dos Deputados, ele propôs a um deputado governista (um oficial general) que se fizesse uma audiência pública para que se resolvam os ruídos entre a base militar descartada e a cúpula bolsonarista endinheirada. Travestidos de democratas moderados, em aparente contraste com a bronquice do capitão-presidente, os generais tendem a manter a calma e a lhaneza próprias dos cavalheiros prussianos (que eles afetam ser).
Praticamente nada os tira do sério. Pode-se confrontá-los com temas espinhosos como o atraso socioeconômico causado pela ditadura; pode-se acusá-los pela recorrente (e criminosa) apologia que alguns deles fazem à tortura; mas quando confrontados com a mera possibilidade de se colocar um sargento e um general frente a frente em condições de igualdade para um debate de ideias, eles se revelam. Mostram de que material são feitos.
Diante do que entendem como máxima agressão, perdem a compostura parlamentar (que fingem ter) e traem o seu lado Bolsonaro que, a muito custo, tentam esconder. Às palavras corteses, mas incisivas, do deputado Glauber, o deputado Girão (que inapropriadamente se chama de “general”) respondeu com destrambelho e histeria próprios de quem foi desmascarado. Quem tinha alguma curiosidade de ver um general autoritário fazendo o que faz melhor teve uma pequena amostra grátis.
Essa “tragédia familiar” militar diz muito sobre o governo atual. Estão na mesma harmonia, é a mesma nota. É aí, nesse pequeno ponto de atrito entre comandantes militares e seus comandados que jaz a medula do governo em curso e o que ele pretende para os brasileiros. Não é diminuir, mas aumentar o abismo entre o topo e a base. “É preciso que tudo mude para que tudo continue como está…”
JB Reis – Texto no Portal Militar
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