O Valor dos valores
Chegou-nos via diversas redes sociais, das quais somos assíduos frequentadores, um relato singelo, que em outros tempos teria morrido sufocado dentro de algum quartel obscuro. Mas, como vivemos em tempos de informação descentralizada e distribuída, aquele tempo profetizado em que “nada oculto ficaria sem ser revelado”, verídico ou não, o quadro merece uma dissecação.
Um certo general do EB teria conseguido os seus quinze segundos de fama na milicolândia por conta de algumas palavras ditas durante uma “palestra” -– usamos aspas, porque sabemos como são as “palestras” de quartel: “só eu falo o que eu quero e ninguém pergunta nada que me contradiga, senão…” Tudo bastante democrático! Dissera o homem que “nós não temos que valorizar a praça. A praça que se valorize” (sic). Para meios entendedores, “praça” na novilíngua da caserna, é a suboficialidade. É um código comum para os que não são “oficiais”. “Oficiais”, por sua vez, são os donos da cocada preta. Aqueles meninos branquinhos, fofinhos e riquinhos que são os donos da bola e se acham os donos da rua.
Quem seriam “nós” na frase pseudofrankfurtiana do palestrante? Podemos depreender que “nós” aí significaria o Exército, as Forças Armadas em geral? O tal general seria porta-voz do Exército? Consequentemente, porta-voz do povo brasileiro!? Sabemos que não, mas vamos assumir isso em parte, em nome da coerência… O EB então não tem obrigação alguma de valorizar os subtenentes, sargentos, cabos ou soldados. Quem terá então?
“Valor” além do sentido empregado na Economia tem também significância moral, psicológica, indicando “audácia, vigor, mérito, importância”. Em qualquer relação social ou interpessoal, para o bem do coletivo, há meios de valorização que servem para manter coeso o tecido social. Por exemplo, no âmbito familiar podemos tratar nosso cônjuge como se fosse um mero instrumento semi-humano fornecedor de prazer sexual, de zelador do lar, de propiciador de viagens e mimos caros? Sim, podemos. Isto é uma relação psicopatológica tosca, de fundo escravista, mas não deixa de ser uma relação. Mas, existe amor aí? Existe respeito mútuo? Há possibilidade de crescimento espiritual nesse maquinismo interpessoal? Obviamente que não. Nesse tipo de relacionamento está ausente o meu reconhecimento do valor intrínseco do outro. Ele só tem valor para mim na medida em que me serve, em que eu posso espoliá-lo seguidas vezes. Não importa o que ele faça. Não importa quem seja. Ele nada vale para mim. Eu não lhe dou “importância”.
Ora, por mais que os donos do parquinho camuflado insistam que sim, o militarismo não é uma ilha. Ele é forçosamente um cadinho da sociedade. Toda a nação está representada nele. Talvez seja motivo de embaraço para os que se acham proprietários dos quartéis, mas ali, cerrando fileiras com eles, estão o filho da doméstica, o irmão do viciado, a mãe do homossexual. E como quase sempre a vida imita a arte, estes estão perfilados justamente entre a suboficialidade, entre as praças, os mais pobres, os vulneráveis, a base social – que segundo o general palestrante não teria valor intrínseco para “nós”.
Retorta humana que é, a caserna repete em ponto menor a sociedade. Instados pela pressão que naturalmente vem de baixo, os subalternos olham para cima, na esperança de que os que juraram “tratar com bondade o subordinado”, possam lhes iluminar o caminho, não de favorecimentos ou paternalismos, mas de justiça e oportunidades, e, imbuídos desse DNA de companheirismo que só a vida militar propicia, possam reajustar os carentes que cruzam os portões do quartel. Mas a fala deste senhor da guerra deixaria transparecer o oposto disso… Parece que a nova ordem é prima-irmã da desunião.
Um exemplo escrito disso é a Lei nº13.954/2019 (lei de aumento só para generais) que segregou praças, até então iguais, em três categorias diferentes: uma, veteranos anteriores a 2001 (reserva com posto acima); duas, veteranos lacunados entre 2001 e 2019 (reserva sem nada); e três, veteranos a partir de 2020 (reserva com “altos estudos”). A julgar verdadeira a fala sobre o valor das praças, os gênios idealizadores dessa inédita desestruturação da carreira militar, agora enviam seus megafones engalanados, como harpias debochadas pelos quatro ventos, mandando o recado: “já temos o nosso (dinheiro), vocês que se virem… e não contem conosco.”
Primando pela coerência institucional, os arquitetos da blitzkrieg que devastou financeiramente as vidas de centenas de milhares de militares de baixa patente em favor de aumentos cabeludos para generais, brigadeiros e almirantes -– vociferam agora que os desafortunados do quartel que se valorizem. Isso soaria tão escandaloso quanto um estuprador que exige orgulho e cabeça erguida de sua vítima, após a consumação do ato. Cinismo institucionalizado? Primeiro tiram as armas para depois dizerem “defendam-se”, porque “nós” não estamos nem aí!
_________
P.S.:
Um derradeiro, mas nem por isso desvalido aviso, vai para o cidadão votante, que agora em novembro viverá novamente o show da democracia bananeira, as eleições municipais. Atentem bem para o voto. Não pensem que generais no poder vão tratar o povo como generais. Muito pelo contrário. Generais não são o povo. Um governo de generais, todos estão vendo, é este que aí está, que dá R$10mil de aumento para generais, almirantes e brigadeiros, 0% para soldados e bitributam pensionistas idosas e viúvas. Cordeiro que vota em lobo não tem do que reclamar!
Reis