Das capitanias hereditárias ao loteamento de cargos para o centrão, as instituições no Brasil invariavelmente se prestam a ser possessões de alguma dinastia. Em quase todas, viceja como um câncer aqui e ali, no passado e no presente, alguma estirpe de oportunistas prontos a reencarnarem aquele espectro que assombra o povo e que se convencionou chamar os “homens bons”, que em português claro são aqueles que, mesmo não sendo, agem como se fossem donos dessas instituições, e tratam de manter o povo, possuidor legítimo, longe das decisões. A eternização dessas oligarquias não teria garantia de sucesso se não houvesse uma base subjugada, crédula em seus senhores. Por mais que as aparências enganem, as Forças Armadas não são exceção a essa dança macabra de senhores e escravos. A Marinha, que fez questão de deixar isso bem claro ao longo de sua história, contaminou a FAB com essa doença.
É conhecida de todos a Revolta da Chibata. João Cândido, o Almirante Negro, tomou a capital fluminense como refém. Naquela época os castigos físicos eram a pedagogia preferida dos oficiais. Como não dispunham de elementos morais suficientes para lidar com a tropa, lideravam pelo chicote. Levados ao extremo do inconformismo, alguns marinheiros se rebelaram e exigiram sob ameaça de canhões que a carnificina regulamentada cessasse para sempre. A história é sabida. Foram anistiados e logo em seguida traídos pelos seus comandantes, os “homens bons” da Marinha… Essa mancha negra no branco naval persiste, repugnante e insidiosa. Até hoje a memória de João Cândido é banida da Marinha, e o Estado Brasileiro, ao não reabilitar o brioso marinheiro defensor de injustiçados, descaradamente endossa a chibata e diz de modo tácito: “é isso mesmo! É o que merecem de nós”.
Pois bem, os tempos são outros, os homens são outros, mas a chibata financeira está tão ativa quanto a antiga e fazendo estrago semelhante, conquanto não mais no lombo do marujo, agora no contracheque do praça.
A recente Portaria nº 86/2020 do Ministério da Defesa sacramenta diferenças salariais significativas entre militares das três Forças. No documento fica evidente que sargentos da Aeronáutica têm menos acesso a cursos que seus pares na Marinha do Brasil e Exército Brasileiro.
Enquanto no Exército e na Marinha os cursos de altos estudos 1, que geram um adicional de 73% sobre os soldos, podem ser ministrados para militares a partir da graduação de primeiro sargento, na Força Aérea somente militares na graduação de suboficial têm o direito.
Toda essa distopia administrativa talvez tivesse algum cabimento se Marinha e FAB fossem ministérios estanques, como eram antigamente, mas há anos elas estão sob a batuta de um Ministério (o Ministério Invisível, isto é, Defesa). Onde fica a lógica de tamanha desordem? O que motiva a Administração pública a legislar de forma tão canhestra, beneficiando uns e numa tacada só prejudicando outros? Qual será o objetivo desta aberração que avilta princípio básico do estado de direito, isto é, o tratamento igualitário aos iguais?
Os oficiais têm sua carreira e promoções reguladas por lei, manifestação legítima da vontade popular. Já os praças têm sua vida na caserna regulada por portarias, paridas pela administração intramuros, dadas à luz por generais, almirantes e brigadeiros. Ora, isso não parece grego aos que sabem ler o caráter dos homens… Esse mundinho paralelo em que velhos burocratas de coturno escolhem ao bel prazer, de maneira randômica, quem merece quem não merece, quem ganha quem não ganha, é o que sobrou do espírito da chibata. A FAB, feudo azul das águias arrogantes, está seguindo as pegadas da MB. Inibida pelo zeitgeist (o espírito do tempo), à impossibilidade de ressuscitar o “flagrum” ancestral, manipula números, escamoteia dados, distorce a realidade, e a poder de caneta, o novo látego, detém carreiras, paralisa sonhos, trava a pujança própria da Força. Não veem os obtusos senhores alados que privando os homens de justiça, que não é mérito, mas direito, apontam-lhes o caminho da saída.
Este laboratório kafkiano comandado pelos oficiais generais que é a administração castrense não será jamais interditado, é “instituição permanente”. A única morte que pode padecer é por inanição, isto é, quando a carreira de praças for tão sem atrativos, tão degradante que nenhum civil pense em se submeter a essa chibata moderna, sob pena de ser considerado não mais um patriota, mas um idiota. Aí então, expurgadas da sargentada, da marujada, da soldadesca, as Forças Armadas serão o sonho de todo oficial elitista, um olimpo platinado. Resta esperar como se sairão sozinhos em batalha…
JB Reis linktr.ee/veteranistao