A reunião que não era pra ser, e como o governo trapalhão e psicopático de Jair Bolsonaro acentua ainda mais a animosidade entre as classes militares
No militarismo a hierarquia se define em três “círculos hierárquicos” que “são âmbitos de convivência”. O círculo dos oficiais, dos praças e dos praças especiais. Desconsiderando o último, que se refere aos diversos alunos em formação, a “linha demarcatória”, a hierarquia, torna-se uma cisão, um racha de fato entre os dois primeiros círculos, entre a oficialidade e a suboficialidade. Existe aí uma tensão que transcende a mera legalidade, necessária ao cumprimento das funções estatais. A coesão e a eficiência da Força Armada dependem do ajustamento dessa tensão.
As forças armadas brasileiras que em grande parte delinearam o gigantesco território, graças ao soldado nativo, a contragosto incorporado às suas fileiras, nasceram com as capitanias, cresceram com as bandeiras, adolesceram na República e fizeram-se adultas na Itália. Essas Forças incorporaram o negro, o índio e o branco, e à força de hierarquia e disciplina, amalgamaram-nos no soldado profissional. Elas viram o inigualável processo civilizatório de todo um povo, colaboraram para o fim da escravidão, assistiram à emancipação das mulheres. Mas resta ainda, imiscuída em suas entranhas, invisível aos olhos da sociedade, uma mácula, um preconceito, às vezes velado no trato pessoal, mas que vez por outra aflora, como uma flor do mal.
Numa entrevista, o ministro general Heleno (quando ainda era apenas general) disse com estrépito, batendo no peito, que as Forças Armadas eram as “instituições mais democráticas do Brasil”, pois na caserna não havia preconceito de espécie alguma. Todos seriam iguais e teriam as mesmas oportunidades. Um quadro bonito de se ver. Imagine-se um soldadinho que ao fim da carreira é um engalanado general. Lindo, não!? Mas a sociedade ignora que há duas casernas. Uma para o nobre (o oficial) e outra para o pobre (o praça). Água e óleo, eles não se misturam.
Há entre a oficialidade e a suboficialidade uma animosidade que parece resistir aos séculos. Inabalável como uma rocha, resiste aos vendavais que por vezes sacodem as sociedades. Tudo muda, mas a hostilidade e a desconfiança entre comandante e comandado, entre o oficial e o praça permanecem. Esse sentimento, que tem todos os traços de psicopatia, descambou para um tipo bizarro de racismo de classe, um classismo. Todos os ódios, reservas, os preconceitos de cor, de etnia, de sexo, de idade foram, por força das pressões oriundas da sociedade civil em evolução, remodelados e concentrados na única válvula de escape disponível, neste classismo nefasto que se oculta na hierarquia militar. E a pressão é sempre unidirecional, de cima para baixo. Do oficial para o suboficial. Não é uma luta de classes. É um massacre.
Pela análise acima e a julgar pelo modo como o (des)governo Bolsonaro está lidando com a crise crescente entre os veteranos das três Forças, traídos por ele e sua maldita Lei 13.954/2019, parece que a psicopatia da caserna migrou junto com os generais para o palácio do planalto.
Na terça-feira, 15, publicou-se na RSM que o secretário da presidência havia convocado os representantes da tropa para uma reunião que, pensou-se, seria para resolver os problemas da Lei. O advogado experiente e conhecido da família militar, Dr. Adão Farias, o conceituado SO Márcio Rodrigues e o Vereador Fabrício (que também é suboficial) foram convidados, mas foram surpreendidos pelo tratamento de cavalaria com que o general travestido de secretário lhes brindou, sendo a cereja do bolo o fato de o Vereador ter sido impedido de adentrar à sala!
O secretário não deve saber que um “vereador é um agente político, eleito para sua função pelo voto direto e secreto da população”, o equivalente municipal do deputado federal. Se ele não sabe disso, no mínimo cometeu uma gafe imperdoável. Num governo de pessoas mentalmente sãs ganharia o cartão vermelho. Mas, se ele sabe disso, e agiu como agiu com o Vereador, PORQUE o Fabrício também é Suboficial, pode-se supor que na mente deste ministro, que nunca deixou de ser um general, o Vereador nunca deixou de ser um Suboficial, ou seja, um inferior. E ele provavelmente acha que agindo como agiu está cumprindo com o seu dever de general, isto é, massacrar um subordinado com o que estiver mais à mão, que no caso dele, foi a truculência, atual moeda de troca naquele palácio.
Com uma interlocução desse nível, o caminho mais fácil para se resolver as questões da Lei 13.954/2019 é o que leva ao poder judiciário, onde, espera-se, a hierarquia e a disciplina sejam moderadas com dignidade e honra, qualidades que faltam aos psicopatas… fardados ou não.
SO RR FAB Reis