Forças de exceção
O Brasil ultimamente assiste boquiaberto ao desenrolar do famigerado “inquérito do fim do mundo” (Inquérito nº 4.781 das Fake News) aberto por um dos ministros mais Imoraes do STF. Estupidificando a todos que entendem um mínimo de trâmite processual – na verdade, se o sujeito tiver um pouquinho de bom senso já vê que a coisa toda é uma “dramédia” kafkiana -, a inquisição, ou melhor, o inquérito, persegue determinadas pessoas que apoiam determinado político sem partido. O ministro que reinaugurou o santo ofício, estamos carecas de saber, é tão isento quanto o advogado do diabo, e isentamente deflagrou um procedimento em que ele é o ofendido, ele apura e ele julga. Como dizia um certo rei francês “o Estado sou eu”.
Mas o que é motivo de tanto assombro para a sociedade civil, para a sociedade militar é o pão cotidiano. Até a Constituição de 1988 (na prática a nova ordem constitucional demorou uns 20 anos a transpor os muros do quartel) o processualismo que vigorava na caserna era semelhante ao do rei Sol. Monocratismo crasso. Se o superior se ofendia, ele apurava, ele julgava e, supra sumo da delícia autoritária, ele prendia. Hoje em dia, em que pese a pressão judicial, o que existe é uma apuração célere (pois a autoridade normalmente tem pressa – em punir, claro), despida por exemplo, de formalidades espinhosas como a presença do advogado, profissional essencial à administração da justiça. O militar, principalmente o de baixa hierarquia, ainda hoje, pelo menos psicologicamente, vive sob um estado de exceção.
Segue um exemplo bem atual do “modus operandi jus militari brasilis”…
Num grupo de whatsapp de veteranos surgiu um documento aparentemente verídico. O camarada, que é da reserva, está sendo acusado de transgressor “por ter participado de manifestação coletiva de caráter reivindicatório ou político, no período do trâmite do PL 1.645/2019”. Isto é um excerto literal do Art. 45 do Estatuto dos Militares, em seu capítulo III, que trata da violação das obrigações e dos deveres militares. Porém, o art. 42 do mesmo capítulo sinaliza que só se configura a violação caso não haja legislação específica sobre o tema. Como o direito de expressão do veterano (que obviamente abarca a manifestação coletiva) é amparado pela Lei 7524/1986, não se configurou transgressão ou crime, e o nosso amigo arrolado não tem o que temer. Mas a pergunta que não cala: por que o administrador militar chega a instaurar um processo disciplinar, com todas as evidentes consequências espinhosas e atentatórias à Administração que isso acarreta, sabendo de antemão (esperamos que saiba!) que NÃO houve transgressão ou crime!?
Outro exemplo? É por aqui, vamos descendo…
Há pena de caráter perpétuo? Não, claro que não! Essa vedação é constitucional, certo!? Não se pode impedir alguém de querer melhorar. Não se pode proibir um indivíduo de tentar de novo. Isso seria próprio de regimes ditatoriais… O que dizer então dos cursos de progressão funcional realizados na carreira militar? Quem não é minimamente aprovado neles não pode ter uma segunda chance. Não pode tentar de novo no ano que vem. Está proscrito, eternamente maculado. Isso é ou não é uma pena de caráter perpétuo!? Quem pensa que sim é a juíza federal Moniky Mayara Dantas. Em decisão de tutela de urgência, ela determinou que a União, através da Escola de Especialista da Aeronáutica, realize de imediato a matrícula de um sargento da Força Aérea Brasileira que foi reprovado no Curso de Aperfeiçoamento de Sargentos.¹
Mas voltemos um pouco no passado. Aos corredores do poder da capital federal. Por ocasião da tramitação da lei de reestruturação da carreira militar em 2019 foi notável a presença numerosa de generais e oficiais do alto escalão das Forças Armadas. Um vai e vem sem fim de estrelas verdes, azuis e brancas. Algum sargento ali? Alguma pensionista? Algum representante das associações militares regularmente constituídas? Não!! O “órgão” que com insuspeita destreza ali movia seus tentáculos era a conhecida “assessoria parlamentar” do EB, cujas metas, entre outras, são: facilitar a troca de informações sobre assuntos e projetos legislativos de relevância; permitir a ligação com parlamentares em suas áreas de origem; acompanhar, nas assembleias legislativas e câmaras municipais, as proposições de interesse da Força.²
O que se vê um ano depois da promulgação da Lei 13.954/2019 é que os generais (o topo da pirâmide militar) estão tendo um aumento líquido de 14%, sem contar a ajudinha do Paulo Guedes, e por outro lado, há relatos de sargentos que estão tendo decréscimo salarial.
Pode-se então perguntar, qual a diferença entre uma assessoria parlamentar engalanada e um bando de sargentos indignados? A indignação.
Por que um cidadão, pelo fato de ser militar veterano, não pode fiscalizar as atividades parlamentares, e inclusive questionar quais são os “interesses da Força”!? Principalmente quando tais interesses só beneficiam a quem está no topo! Por que um cidadão, pelo fato de ser militar veterano, não pode exercer o seu direito e o seu dever de cobrar do político o que é mais justo para a sua classe? O cidadão é o mandante, o político é o mandatário. Isto ainda não foi compreendido no Brasil. A despeito da recente e estapafúrdia declaração³ do presidente do STJ, Humberto Martins, TODO PODER EMANA DO POVO, não emana dos mandatários do povo. Mesmo que a contragosto de alguns, deste povo faça parte também a suboficialidade das Forças Armadas.
Reis
Texto publicado no PORTAL MILITAR
¹https://www.serido360.com.br/2020/09/justica-federal-do-rn-determina-que.html
²https://www.sociedademilitar.com.br/2019/09/assessoria-parlamentar-do-exercito-coronel-explica-o-que-e-para-que-serve-e-como-funciona.html
³https://www.oantagonista.com/brasil/o-toffoli-e-povo-diz-humberto-martins/