“O tipo mais insidioso de cativeiro é aquele em que o prisioneiro não tem consciência de seus grilhões”
(Saint Germain)
Entrei na carreira militar no fim da adolescência. Não tinha a menor ideia do que seria, e a vida me ofereceu o que no decorrer dos anos entendi ser o necessário. Quando fui apresentado à hierarquia militar, não como uma abstração retórica, mas como um código de barras tatuado sob a pele, fui tomado de uma sensação de opressão (não no sentido político-ideológico que se dá a essa palavra, mas no sentido de enquadramento psicológico). Estava tudo ali, já pronto há séculos, quiçá há milênios.
Todos os postos e graduações, toda a terminologia empregada, todos os uniformes específicos para cada uso, todo o gestual regulamentado e as atitudes esperadas. Tudo, absolutamente tudo já estava previsto. Não havia espaço para criatividade, não havia ambiente para inovação – aliás, um ditado muito repetido em tom de orgulho na caserna diz que “aqui ninguém inventa nada, tudo está escrito”. Isso para a juventude é uma grande violência, quase um veneno. Arrisco dizer que faça tanto mal (a longo prazo) quanto algum tipo de dependência química.
O que mais me sufocava era a disposição milimétrica com que se estabelecia a hierarquia entre as pessoas. Quando dois militares se encontram, (sempre observei isso, e fui tentando me desprogramar ao longo do tempo) imediatamente eles se interrogam sobre quem é o “mais antigo” (jargão para superioridade hierárquica). É impensável que um militar se ache igual a outro. Eles sempre se veem numa relação vertical (um acima ou abaixo do outro), mas nunca numa relação horizontal de igualdade.
É praticamente incontrolável. Eles podem ter uma conversa agradável, inteligente, culta, mas ela só se inicia depois de estabelecido o limite da relação superior/inferior. Claro, se estão fardados e são de postos ou graduações facilmente discerníveis pelo uniforme, o escrutínio é dispensável. Mas se são totais desconhecidos, o impasse deve ser resolvido o quanto antes.
Com o passar dos anos, depois de muito me “insurgir” contra “o sistema” – claro que em foro íntimo, pois a mais leve demonstração de dissidência é aniquilada imediatamente – e com o arrefecimento do ardor juvenil aliado às necessidades da vida adulta, fui me adaptando, como acontece com quase todo mundo. O leitor já pode inferir que nunca fui um idealista, nunca fui um militar “pleno”, em idílico enlevo pela profissão. Mas como a maturidade biológica vai nos brindando com recursos de que não dispúnhamos na juventude, passei de espectador passivo da minha vida profissional (uma engrenagem autocontida) a observador da totalidade da máquina.
Sob essa perspectiva mais crítica, e já definitivamente entranhado no sistema, mas jamais acostumado a suas mazelas, algo que sempre me chamava atenção era a cisão existente entre as duas categorias formadoras da classe, oficiais (que comandam) e os praças (que complementam o comando dos oficiais). A “defasagem” cultural interna corporis artificialmente imposta entre essas duas faces da mesma moeda era tão pronunciada quanto o inverso da distância entre hierarquia e disciplina, as colunas que sustentam o edifício.
Obviamente seria infantil demonizar as pessoas, os indivíduos por trás da farda, mas essa percepção da inimizade institucional é real, ela existe. Eu não gosto de ostentá-la como quem carrega um troféu – ou como um pedinte que usa a própria miséria para extorquir lucro dos passantes –, mas eu não posso me furtar a mostrar essa realidade. Eu não finjo que ela é uma fábula. Ela não é fruto de ranço pessoal nem de mentalidade de gangue, não é isso. Eu convivi com oficiais brilhantes e com praças medíocres, e vice-versa. A inimizade institucional é sistêmica, orgânica, e provavelmente é reflexo ou projeção da própria realidade sociológica brasileira.
Quando em 2019 a reestruturação da carreira chegou ao debate público, não me surpreendi com o rumo que as coisas tomaram. Mesmo que tenha ficado abismado com o que os comandantes militares foram capazes de fazer, vi na manobra de objetivos financeiros – travestida de ideologia política – o corolário de trinta anos de observação “em campo” (no dizer dos antropólogos!). Vi na prática política uma categoria inteira de servidores da pátria, potencialmente tão valorosos quanto o mais valoroso general, almirante ou brigadeiro, ser tratada como lixo descartável, isto é, algo que ainda tem um valor, mas que precisa ser “reciclado” – esse inclusive foi o espírito da Lei que legitimou o abuso do poder militar consubstanciado na “nova ordem”.
Ora, a “melhor” doutrina – não escrita em papel, senão inscrita na ética militar – até aqueles dias era a do general Góis Monteiro, segundo a qual os “defensores naturais dos sargentos são os seus chefes”. Os generais políticos da atualidade decidiram quem valia e quem não valia, como se uns fossem mais militares do que outros. Se a doutrina do general getulista tinha foros de paternalismo – mesmo que sub-repticiamente objetivasse criar travas políticas para as classes subalternas de sua época – ainda assim, ela contemplava as diferentes categorias militares como pertencentes a um todo coeso, indiviso.
A reestruturação da carreira de 2019 destruiu esse idealismo tão caro e raro no mundo atual, essa possibilidade de haver uma irmandade de armas mais do que um sindicato de mercenários, e deixou no lugar um perigoso vácuo institucional onde a partir de então começou a reinar a desconfiança, onde a sombra da traição espreita, onde passou a vicejar como erva daninha o inquietante anseio de poder político, até então estranho ao soldado.
Depois dos meus trinta anos, constato que a instituição militar brasileira, como um escorpião acuado pela cobiça de uns poucos, feriu de morte a si mesma. Vejo as Forças Armadas de hoje em franco retrocesso moral, caminhando a passos largos para o acostamento da História e para a irrelevância das profissões.
JB Reis – Portal Militar
https://linktr.ee/veteranistao