O recente livramento de um general da ativa, que foi “autorizado” pelo Presidente da República a participar de um comício mitomaníaco, perturbou o doce cochilar de alguns oficiais empijamados. Do alto de seus méritos e medalhas, generais e coronéis, outrora os homens bons da caserna, agora meros cidadãos iguais a qualquer um, esgrimam-se na pista virtual das redes sociais.
Uns atacam o Presidente, outros defendem a honra supostamente aviltada do Exército. Mas um denominador comum a todos os artigos, textos, notas, postagens desses inflamados paladinos do pundonor castrense, algo que sem dúvida escapa aos que não são do metiê, é a sobranceira e pedante certeza de que eles, e só eles, são os tutores da hierarquia, da disciplina e, por extensão, da própria profissão das armas. E se debulhando em lágrimas de jacaré se esquecem de que o elitismo estrutural que personificam e preservam pode ter sido a fenda pela qual entrou o causador nefasto de todos os atuais males militares. Quem sabe se, lá em 2019, tivessem se erguido contra a primeira traição de Bolsonaro, o presente fosse outro, e o futuro menos sombrio…
Poderíamos nos arriscar a dizer que o nosso “mito fundador” foi a Guerra do Paraguai, o evento histórico “mais importante na construção da identidade brasileira no século XIX”. Conquanto desinformadores profissionais difundam nos livros de História que os recrutamentos para essa guerra foram forçados, muitos Corpos de Voluntários da Pátria formaram-se em todo o país espontaneamente, desde o coração do povo mais pobre. A guerra teve como um de seus resultados a democratização do Exército. A matriz étnica múltipla, o “melting pot” brasílico, afluiu aos borbotões às fileiras do Exército. Como consequência disso, atualmente mais de 82% do efetivo total de militares das Forças Armadas são de praças. Seria dizer que 160 milhões de brasileiros estão representados por soldados, cabos, sargentos e subtenentes!
Replicando o mecanismo social vigente, em que uma oligarquia astuta se apodera e fala pela maioria silente, a pretensa tutela dos oficiais em relação aos praças é artimanha maquiavélica e maneta. Respaldada pelo general Goes Monteiro, o general getulista revolucionário – que a respeito dos sargentos e seu legítimo interesse em defender direitos de classe, afirmou “os defensores naturais dos sargentos (…) eram seus chefes e o próprio Exército”¹ – tal tutela é invocada apenas quando o círculo subalterno pleiteia direitos, justamente para os negar. A exemplo do que ocorreu com o PL 1.645, a “defesa natural” dos chefes traduziu-se em traição e ultraje nunca antes vistos.
Esses oficiais, heróis da boa democracia ateniense, estão, agora, enquanto isto é escrito, trabalhando nas sombras do Congresso Nacional, como sói acontecer com os traidores solertes, para “atualizar” o Código Penal Militar, um subterfúgio torpe para amordaçar os praças das Forças Armadas. Pretendem calar de vez a voz do povo, que nos quartéis, é representado pela suboficialidade. Em verdade esses homens abominam o povo, têm aversão à democracia plena. Quando atrelam um soldado negro a uma carroça, eles o fazem com a certeza de que cumprem o seu papel de mantenedores da pirâmide social brasileira bem do jeitinho que ela sempre foi.
E ei-los em 2021 a deplorar a “corrosão das instituições militares” pelas mãos do aventureiro do Planalto. A empáfia e o orgulho que os obsedam não lhes permitem jamais fazer um mea culpa!? Será tão difícil assim, um exercício de autocrítica? Não conseguem ver que, se em 2019, tivessem intervindo no PL 1.645, cumprido o papel tutelar que afirmam ter, e defendido praças e pensionistas contra a traição de Bolsonaro e seu círculo interno, a sanha destruidora do “mito” arrefeceria, pois ele veria que comandantes e comandados eram um só corpo. Mas sabemos que não foi assim.
Sabemos que o vil metal falou mais alto que as lealdades… Não terá sido por ali, por aquela fissura de cobiça e vilania, que Jair Bolsonaro se insinuou? Tivessem sido os “defensores naturais” dos sargentos, justos e menos gananciosos, talvez hoje o caso Pazuelo fosse coisa impensável… Os que convidaram um rufião intratável e desprovido de moral a viver em suas casas, na tola esperança de que “alguém” – que não eles – iria “controlá-lo” não se podem agora queixar do pandemônio que ele está causando. Eles também têm culpa, e muita.
¹Citado no excelente livro “Forças Armadas e política no Brasil”, de José Murilo de Carvalho. Este livro devia ser leitura obrigatória nas escolas militares (não só de oficiais, mas principalmente de sargentos).
JB Reis
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