“Quem quer que queira reinar sobre os homens busca rebaixá-los, surrupiar-lhes a resistência e os direitos, até tê-los impotentes diante de si, feito animais”
(Elias Canetti)
Basicamente pode-se entender o patrimonialismo como uma forma mimetizada de absolutismo. É prática nebulosa de administração da coisa pública, a qual, sendo de todos – à maneira das mulheres de “vida fácil” – acaba sendo de ninguém, o que acaba dando azo a que seja de fato propriedade de um grupelho definido de homens, uma “elite”, dentro de alguma estrutura de poder. Um brocardo chistoso, que pretende definir o que seria o socialismo, sintetiza com singeleza essa proposição: “o que é meu é meu, e o que é teu é meu”. Nesse diapasão, o envenenamento ideológico camuflado de doutrina parece ter cravado garras profundas nas mentes de um número gigantesco de militares da reserva. Encabrestados por anos de um patriotismo artificial regurgitado pela cúpula dirigente, o pessoal inativo das bases das Forças Armadas é incapaz de enxergar que, mesmo estando livre da servidão profissional, continua a ser súcubo do mesmo feitiço que o mantinha cristalizado em preconceitos e limitações intelectuais. Incapazes de agir como cidadãos politizados, só podem assistir ao lento esgarçamento de seus direitos, enquanto o topo da pirâmide, a “elite”, chafurda em privilégios.
O estatuto dos militares demarca claramente limites entre as duas categorias de militares. Os oficiais são os condutores dos destinos das Forças singulares, secundados pelos graduados, que não cruzam tal fronteira, exceto em situações excepcionalíssimas. Não se questiona a validade e a razoabilidade desse princípio. A hierarquia militar é sistema piramidal e essencialmente segregacionista. Constrangida por sua finalidade, não pode se materializar de outra forma. A ascensão profissional não só é desencorajada, como também é rara. Há poucas portas de entrada e muito raramente o elevador de serviço cruza com o social naquele momento exato que propicie um inusitado rompimento dessa segregação. O de cima sempre sobe, e o debaixo luta para não descer…
Sobre essa dicotomia assimétrica do pessoal militar, o general Góis Monteiro, ministro da guerra de Getúlio Vargas, disse: “nunca houve no Exército, e com ele é incompatível, essa ideia de classe no sentido moderno (sindical) de se contraporem umas às outras em busca de benefícios exclusivos.” Por cima desse bolo de deboche, arrematou com a típica cereja da hipocrisia: “os defensores naturais dos sargentos são seus chefes e o próprio Exército.” Em 1963, os primeiros atos de perseguição estatal foram praticados pelas Forças Armadas contra seu próprio pessoal. Os militares graduados (suboficiais, sargentos e cabos), que foram eleitos para cargos eletivos, foram sumariamente cassados. Um ano depois começaram mais amplamente os expurgos. O mecanismo antidemocrático da classe armada mostrava sua coerência conservadora. O patrimonialismo estatal das coisas, nos quartéis, aprimora-se, e amplificando seu raio de ação, torna-se também o patrimonialismo de seres humanos. Esse gene autofágico da profissão não é recessivo, mas radicalmente dominante, e, como um fractal, replica-se sempre inexoravelmente de cima para baixo.
Com o advento das redes sociais, surgiram os quartéis virtuais. Grupos numerosos, às vezes com milhares de militares, uns ativos outros inativos, servem de termômetro comportamental para saber o que se passa com essa classe, agora tão frequentadora dos noticiários – ultimamente nas colunas de escândalos. Há alguns dias, o deputado federal Glauber Braga, do Partido Socialismo e Liberdade, publicou em um vídeo um aviso e um convite para uma reunião com militares graduados das Forças Armadas no Rio de Janeiro. O assunto desse encontro seria, segundo o parlamentar, tratar das “ações para este ano e para o ano que vem”, tendo em vista “o descaso do governo Jair Bolsonaro” para com as camadas médias e baixas das Forças.
Imediatamente o ideário fascista e autoritário do supracitado general getulista (atenção leitor, isto é importante!) revestido de doutrina militar, fez eriçar o pelo e ranger os dentes de muitos militares. Como um apito de cachorro, a manifestação do deputado esquerdista, inimigo ideológico do governo Bolsonaro, acionou um gatilho subliminar, e as discussões acaloradas logo se tornaram ofensas pessoais. Mesmo os que reconheceram ali um ansiado aceno da classe política, calaram-se. É como se estivessem transgredindo algum mandamento sagrado!
Esse “mal estar” que surge, quando os componentes dos círculos hierárquicos de base começam a se inclinar à esquerda política, é sintomático. Nada mais é do que a continuação da danosa e elitista doutrinação militar, segundo a qual os oficiais sabem sempre o que é melhor para eles e para os praças. É fora de qualquer dúvida que no ambiente intramuros os comandantes são sim os líderes naturais da tropa, mas isso acaba na porta de saída para a reserva. É praticamente impossível argumentar com alguém que internalizou esse tipo de programação mental como se fosse um pensamento próprio. Não adianta dizer que a cúpula militar se uniu ao Partido Comunista do Brasil para barrar a discussão mais ampla sobre o PL 1.645/19. Não adianta relembrar que os generais sabotaram a reunião em que se discutiria o PL 1.645/19 na Comissão de Direitos Humanos do Senado, pois os parlamentares do PT foram convidados pelo Ministério da Defesa para almoçar na hora da reunião. Os generais, almirantes e brigadeiros podem se reunir com Deus e o diabo, e ninguém os acusa disso ou daquilo. Como exímios patrimonialistas usam as Forças Armadas como moeda de troca e ninguém se escandaliza por isso. Na mente dos bitolados pela doutrina “milítica” isso é assim porque os oficiais generais seriam suprapartidários e verdadeiros patriotas, de interesses elevados, enquanto os praças e oficiais auxiliares seriam os ratos egoístas, que só pensam em “se dar bem”. Mas, a história dá mostras do oposto.
Os que veem os políticos (mesmo os que lhes estendem a mão) como inimigos não conseguem ver que este governo, o qual se deliciam em chamar de “patriótico”, pôs em marcha um projeto de democídio lento e calculado. Cegos por uma ilusão infantil de autoritarismo identitário (acham-se representados pelo capitão de mentirinha, que algum dia vai fechar o STF, etc.) não conseguem ver que a política neoliberalizante do antipresidente da República tirou-lhes de fato, e brevemente tirará de direito, a prerrogativa de serem honrados militares da reserva, tratando-os como meros aposentados. Isso está mais do que provado pela diferença descomunal de salário entre praças da ativa e da reserva, que tiveram a mesmíssima formação.
Contracheques e bilhetes de pagamento não respeitam ideologias. Já se escoaram trinta e seis meses desde o PL 1.645/19, e continuamos discutindo as mesmas coisas, enquanto a cúpula traidora ficou duas vezes mais rica.
Viva o mito!!
JB Reis
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