As Forças Armadas não são o que você pensa
“Sê sutil! Sê sutil! E usa teus espiões para todos os tipos de atividade.”
A Arte da guerra, de Sun Tzu
Já discorremos em outros textos sobre a relação que há entre as duas categorias profissionais que compõem a classe militar, os oficiais e os praças. Sabemos que na doutrina e nas fábulas contadas por veteranos mais vetustos, vigora um lenda chamada “espírito de corpo”, que seria algo como uma liga, uma argamassa que une os elementos constitutivos da tropa, do soldadinho mais engomado ao general mais carrancudo. “Trata-se de um elemento moral que possui o caráter de uma verdadeira virtude militar e é um dos mais poderosos liames a cimentar o vigor de um grupo irmanado em torno de um pensamento único.”[1] Infelizmente este “espírito”, que tem tudo para ser mesmo uma lenda, parece já ter desencarnado da tropa, deixando em seu lugar uma recorrente inimizade institucional, um sentimento de polo oposto àquele, mas que é tão arraigado a ponto de inspirar as ações indignas do profissional das armas reveladas na investigação feita pela Revista Sociedade Militar sobre o monitoramento feito pelo Exército Brasileiro durante a tramitação do PL 1.645. A raiz deste antagonismo secular entre o topo e a base das Forças Armadas brota de um entranhado horror à democracia, que ainda não foi exorcizado por completo.
A vida na caserna, como alguns ignorantes, que, mesmo não a tendo vivido, teimam em teorizar sobre ela, é tão somente um transplante da vida social corrupta e desonesta acrescida de ritos inventados e leis medievais que só o ambiente militar pode proporcionar. Seja em 1963, com a protorrevolta dos sargentos que foi o estopim para o golpe no ano seguinte, seja em 1910, com a revolta da chibata, seja em 2019 com o PL 1.645, mudam os atores, mas o drama é o mesmo. Sempre que a cúpula das Forças Armadas se aproxima do poder, seja pela via revolucionária, seja pela via legal, a inimizade institucional fala mais alto e o esprit de corps é rapidamente guardado na gaveta para ser usado no próximo discurso insípido de passagem de comando.
Graças ao primoroso trabalho de jornalismo investigativo da Revista Sociedade Militar, esse enredo está sendo escrito com letras garrafais nas nossas telas de cristal líquido. Segundo as últimas reportagens, as Forças Armadas (seria irreal excluir FAB e MB deste golpe), por intermédio do “braço forte” do Exército Brasileiro, manipularam, espionaram, vigiaram, para usar um termo menos tosco, “monitoraram” políticos eleitos democraticamente para que se pudessem “traçar estratégias políticas para influenciar na tramitação do projeto de lei, que tratou da reestruturação das carreiras militares.”[2] Numa invasão digna de uma operação Barbarossa mequetrefe, os generais de Bolsonaro pularam a cerca entre os Poderes da República e se infiltraram como ratos pelos corredores do Congresso, fazendo afagos em (supostos) antigos desafetos (como PT e Partido Comunista), distribuindo medalhas militares – como se fossem mimos de adolescente – , oferecendo vagas em colégios militares sem concurso (como se fossem eles os donos), franqueando acesso às aeronaves e embarcações militares. Toda essa ação, sem dúvida desonesta e (por que não!?) corrupta, pois feita nas sombras, longe da fiscalização popular, inacessível aos órgãos de imprensa, ocultada até mesmo dos parlamentares, foi guiada pela alta cúpula das Forças com o único objetivo de contornar o processo democrático e forçar com mentiras e manipulações a aprovação de uma lei elitista, tendenciosa, covarde, que, se não fosse a presença de muitos praças veteranos no Congresso em 2019, teria afrontado ainda mais a ordem constitucional vigente, prejudicando ainda mais os militares mais pobres e suas pensionistas.
No final das contas, o que podemos inferir do uso dessa máquina de guerra da informação é que a elite militar brasileira na verdade é bastante diferente da propaganda mentirosa que faz de si mesma. É muito difícil não ser levado a concluir que esses homens que habitam o olimpo militar nutrem uma aversão profunda pelo processo democrático, um horror pânico de se submeter à vontade do povo brasileiro, representado por deputados e senadores eleitos. A democracia para eles é a democracia de “conceito clássico”, isto é, sem povo, sem tropa, sem igualdade. O “espírito de corpo” reduziu-se a um clube fechado. Eles não pensam, e nem agem, muito diferente dos ditadores fardados dos anos de chumbo, como gostam de fazer parecer. Podemos ler nas entrelinhas desses documentos vergonhosamente tarjados de preto que para os líderes militares a ordem democrática da Constituição de 1988 não entrou e não entrará tão cedo em toda sua plenitude pelos portões dos quartéis, e que os homens e mulheres que vivem sob o comando desses generais, almirantes e brigadeiros são cidadãos apenas na medida em que servem aos desmandos dos senhores da guerra.
JB Reis
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[1] https://www.amazon.com.br/Das-Virtudes-Militares-Pedro-Schirmer/dp/8570113919
[2] https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/10/4959486-exercito-monitorou-redes-sociais-para-identificar-detratores-de-projeto-de-lei.html