cerca de oitenta mil prejudicados
Um dia far-se-á a crônica de como meia dúzia de generais ambiciosos por um prato de lentilhas submeteram as FA a rituais seguidos de humilhação e carnavalização por um miserável deputado de baixo clero, que começou sua carreira depois de expulso do Exército como baderneiro.
(Christian Lynch)
O sentimento que as Forças Armadas mais despertam no cidadão é a força que vem da união. As frações de tropa uniformes, a disciplina, a unidade profissional que transcendia o limite temporal entre os militares ativos e os inativos. Muito lindo, mas… a realidade não é bem essa… na fronteira entre ativa e reserva, as Forças pós-Bolsonaro vivem uma distópica realidade, principalmente os veteranos do período 2001-2019. Para estes, a distopia tomou até contornos “geográficos”, o “arquipélago Lacuna”. Quem são seus “habitantes”? Como vivem? O que as Forças pensam deles? O que devem fazer para retornar do degredo causado por Bolsonaro e seus generais fominhas?
Apesar do (ainda) reconhecido apreço que lhe dedica a Nação, a classe militar tem uma peculiaridade ignorada pelo grande público, algo que poderíamos chamar de autofagia institucional. Em três oportunidades, essa verve autofágica pôde ser vista em ação, em toda a sua malignidade. Há relatos de que, quando questionados pelo Presidente José Sarney, “o que os militares precisam da Nova República”, os três ministros fardados, estugadamente responderam com o orgulho peculiar dos asininos: “os militares não precisam de nada” – amargamos quinze anos de pobreza e irrelevância; em 2001, época da MP 2.215, há outros relatos que dão conta de que FHC, ao assinar a MP do mal, teria perguntado aos três ministros fardados: “é isso mesmo que vocês querem??”, ao que os ilustres bucéfalos responderam em coro bovino: “sim!” – mais vinte anos de miséria e desprezo. Um misto muito confuso de demência com arrogância e vaidade que prejudicou muito a família militar como um todo. Já em 2019 a autofagia institucional subiu um grau no marcador da maldade e atingiu os píncaros da baixaria.
Até 2019, tudo ia muito bem, obrigado, no pobre, mas feliz universo das Forças Armadas brasileiras, até que surgiu um certo capitão do Exército acusado de planejar atos terroristas, lá pelos idos de 1987. Junto a ele, meia dúzia ou mais de oficiais generais malandros acharam por bem aumentar astronomicamente o próprio salário. Mas como fazer isso, sem despertar a ira da opinião pública já que (o PT – sempre ele – “quebrou o País” e) “não havia mais dinheiro”!? Como já tinham o coringa na manga desde 2016 (o PL 1.645), passaram a lei 13.954/19 (enganosamente superavitária, mas que já está se mostrando deficitária) e, não satisfeitos em não escalonar o aumento nos soldos (que seria o esperado), abriram um fosso financeiro e nessa “vala coletiva” atiraram capitães, tenentes – bom não esquecer, que estes oficiais, sempre dentro do “espírito de corpo” das FA, são oriundos do quadro de praças – , suboficiais, sargentos, cabos e pensionistas. Para não dizer que o princípio da autofagia foi esquecido, é bom lembrar que os generais foram questionados pelos políticos: “a lei, do jeito que está, é boa para todos os militares?”, ao que responderam os atuais tutores dos destinos alheios: “sim, ela é ótima para todos!”. Já há dois anos vivemos um “estado de exceção” remuneratório inédito na história militar…
Pomposamente apelidada de “reestruturação”, a nova lei criou um tipo singular de reserva. Essa mudança na legislação militar criou um futuro financeiro interessante para quem está chegando e selou um destino de choro e ranger de dentes para muitos graduados veteranos, e até de miséria para muitas pensionistas de praças. Como no livro “Arquipélago Gulag”, do russo Alexander Soljenítsin, esta perestroika bananeira originou um “arquipélago Lacuna” Brasil afora. Salpicados aqui e ali, pequenas ou grandes (a depender da localidade) ilhas de veteranos vitimados pela desestruturação do governo Bolsonaro. Isolados do “continente”, esses náufragos formam um exército de excluídos pela lei 13.954/19. Como filhos bastardos da grande Família Militar, não pertencem plenamente à comunidade dos veteranos, pois foram privados das benesses da nova ordem, ao mesmo tempo que foram excluídos dos direitos da ordem anterior à MP 2.215/01. Restritos a esse “arquipélago” artificial, são desprezados pelo governo e convenientemente ignorados pelos comandantes militares, que histericamente fingem desconhecer a existência desses cerca de oitenta mil prejudicados.
Toda essa ladainha é por dinheiro? Também. Mas ao mesmo tempo por justiça e tratamento igualitário, bases do regime democrático que as Forças Armadas (dizem que) juram defender. Por mais que formalmente a Lei militar não preveja o instituto do “rebaixamento”, existe, sim, o rebaixamento moral e psicológico. E isso está acontecendo agora, e é fruto (da trapalhada ou maldade) do governo Bolsonaro. O arquipélago lacuna é a materialização de um ato administrativo torpe, fruto de mentes degeneradas, que laboraram ao arrepio da honra militar; essa materialização se deu por um fato não só administrativo, mas social e moral, na medida em que criou uma situação palpável e concreta de uma despromoção salarial refletida num rebaixamento moral e psicológico incompreensível para quem não está preso no arquipélago – fato que para algumas autoridades militares não passa de um “falso sentimento”… um pieguismo de alguns veteranos, provavelmente comunistas, sem dúvida…
Detentores do porrete da lei militar, os senhores da casa grande dificilmente farão um mea culpa pelos desmandos que culminaram na desestruturação das Forças em 2019. Urge que os lacunados saiam do torpor e, de maneira republicana, deem a conhecer sua justa indignação, que transcende os personalismos, ultrapassa os indivíduos, pois que é reflexo de um ataque ao próprio coração da honra militar (que deveria valer para todos). Assim como está agendada uma manifestação de militares “reservistas” em apoio ao Governo, por que 10% dos lacunados (módicos 8 mil) não agendam uma manifestação em Brasília? Assim poderíamos demonstrar civilizadamente – nada de tanques enfumaçados – à mídia desinformada, aos generais de memória fraca, e ao Supremo Comandante dos encouraçados de fumaça que engolimos o sapo, mas não engolimos calados. Muitos dizem que o choro da lacuna é descabido e (pasme o leitor!) antipatriótico, já que o PT “quebrou o país” e, nós, os insulares da lacuna, afinal de contas, ainda não estamos passando fome. Claro que esta é a lógica dos que não estão na lacuna ou dos que estão, mas que dão a vida pelo voto impresso e sofrem um estágio avançado da síndrome de Estocolmo. Mas a ordem do menor esforço é esta: primeiro o choro, depois a fome, logo em seguida a fragmentação seguida de queda estrondosa. A morte vem por último.
JB Reis
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