Daqui a um mês, mais exatamente em 16 de dezembro de 2020, será o primeiro aniversário da maior traição já feita contra a família militar. Seria de bom tom fazermos uma dolorosa, porém necessária, retrospectiva. Não como autoflagelação, mas como forma de manter aceso o fogo da indignação. Não se revoltar, mas indignar-se é necessário. Enfrentar a traição que nos impuseram como o que ela realmente é: um fato! E a partir deste ponto, ver tudo o que se passou neste ano sob uma perspectiva criativa e proativa. Processar de maneira isenta o passado, lidar de modo racional com o presente e contemplar desapaixonadamente o futuro que se nos descortina, a nós militares e pensionistas, é o que podemos e devemos fazer. Com inteligência, moral e vibração. Ao contrário daqueles que nos traíram, como bons soldados.
O militar, por força também da doutrinação que recebe, naturalmente tende a ser enredado pelo caudilhismo. Alguém que se apresente como um líder minimamente legitimado, principalmente se advindo da própria classe militar, é visto sem os filtros rotineiros da crítica mental. O sentido único de camaradagem proporcionado pela caserna acaba aparando certas arestas espinhosas, que para outros seriam facilmente perceptíveis. O tirocínio pode baixar a guarda, dando então lugar a uma semiveneração, a uma quase idolatria. Foi sob o disfarce de líder consternado, preocupado com os seus iguais, que Jair Messias Bolsonaro se apresentou aos militares no fim dos anos oitenta. Tirar vantagem dos desprezados, aproveitar-se de demandas sociais genuínas de minorias verdadeiramente negligenciadas, é a fina arte da política dos cínicos. É preciso encontrar um nicho de “mercado”, uma ferida social e manipular habilmente seus componentes, suas “vítimas”. Pacientemente. Por anos a fio, se necessário. Com essa receita abjeta, mas básica em quase todas as cartilhas da politicagem nacional, o ex-capitão (quase expulso do EB por indisciplina – a esta altura alguma luz amarela já deveria ter acendido…) encantou, mesmerizou milhares de militares e seus dependentes por anos até ser projetado no cenário nacional como alternativa viável (vai aqui um obrigado também ao PT!) ao cargo político mais importante do País.
Primeiro de janeiro de 2019. O primeiro militar eleito democraticamente. Grandes e justificadas esperanças – quase certezas – para a família militar de que finalmente alguma coisa poderia mudar para as Forças Armadas. A reforma da previdência, uma das promessas de campanha da equipe econômica, seria a primeira a ser implementada, seguida da administrativa e da tributária. O Ministério da Defesa apresentou o PL 1.645/2019, que ao que tudo indica, fora iniciado no governo Dilma, mas só no atual governo encontrou terreno propício para medrar.
Entre os trâmites do PL 1.645 muita coisa inusitada aconteceu. Uma retrospectiva rápida poderá refrescar a memória dos que já começam a se esquecer e, como povo de memória fraca é repasto de cães abutres, começam também a baixar os braços.
Infelizmente, a tramitação do PL 1.645 foi uma tragédia anunciada. Com relator “escolhido”¹ pelo Ministério da Defesa (!) e uma pressa digna de quem queria varrer alguma coisa para debaixo do tapete, a semente da “Lei do mal” germinou em terreno lôbrego. A uma audiência pública (coroamento do processo democrático, que talvez só perca em importância para o sufrágio universal!) à qual compareceram o advogado Dr. Adão Farias, suboficial da FAB, o suboficial Cláudio Lino, entre tantos outros companheiros irmanados para discutir as falhas do PL, o Ministério da Defesa se recusou a comparecer². Nenhum representante do Órgão se dignou a estar sob o mesmo teto para debater com praças uma lei que descaradamente era uma facada nas costas da base das Forças Armadas, subtententes, sargentos, cabos e soldados, além das pensionistas. Mantiveram as ditas “tradições seculares”: esconder-se atrás da hierarquia para evitar o debate democrático. Como “quem deve, teme”, só provaram que as cartas estavam marcadas.
O MD lançou nota contra manifestações dos militares da reserva que fizessem menção ao PL 1.645. O bizarro disso é que o Clube Militar, que é uma associação de oficiais, várias vezes externaliza opiniões políticas. Escancarou-se nesse episódio o paradoxo do próprio militarismo, que faculta aos superiores um direito constitucional, ao mesmo tempo em que pretende negá-lo aos subordinados, pelo simples fato de serem subordinados. Apesar de os ânimos da “tropa” veterana terem esfriado um pouco após a nota do MD, ela não impediu que houvesse os “30 do CIAA” nem os “300 de BSB”. Veremos isso no post scriptum.
Um caso que realmente deve entrar para a história da picaretagem militar foi o dos 10% de representação para generais. Um dos itens do PL 1.645 pretendia dar aos oficiais generais a porcentagem sobre o soldo para que eles pudessem representar dignamente as “suas” respectivas Forças Armadas. Ora, apesar de alguns militares acharem que são mais militares do que outros, todos são soldados e obviamente cada um tem a obrigação (não o privilégio) de bem representar as Forças. Mas eis que os lustrosos generais tentaram embolsar 10% a mais no contracheque. Não vingou. Outros militares, vigilantes, patriotas, pressionaram democraticamente o relator (não rastejando pelos corredores, entregando panfletos, como algumas assessorias parlamentares fizeram) e a vergonha foi menor. Desprezível, mas memorável, foi a fala do deputado Peternelli (general da reserva) a essa altura do acontecimento, quando disse que “cortaria os 10% de todos”³, caso os suboficiais presentes insitissem. Seria essa a “política com P maiúsculo” a que se referia o general Mourão, quando era presidente do Clube Militar?4
Houve o “escândalo” das medalhas, protagonizado principalmente pela Marinha do Brasil e denunciado pela Revista Sociedade Militar. Este veículo de imprensa, sem o qual certamente a família militar estaria às escuras, oficiou à Força Naval que expusesse os motivos que a levaram a conceder diversas medalhas a alguns políticos envolvidos na tramitação do PL 1.645. O “desfecho” do caso, digno de TV Pirata, foi que a MB alegou ter descartado (isso mesmo, jogado no lixo!) a papelada que justificaria ter sido, por exemplo, amedalhado o deputado Hélio Lopes – talvez um agrado por ter mantido a “compostura”, e não ter atrapalhado a aprovação do PL!? Perguntar não ofende…5
Na manhã do dia 15 de outubro de 2019 estava agendada – já há algumas semanas – a audiência pública que discutiria o PL na comissão de Direitos Humanos do Senado. Eis que o Ministério da Defesa (o nosso “ministério invisível”, que só aparece para atrapalhar) organizou um almoço com o Partido dos Trabalhadores (isso mesmo, com o PT) e outros luminares da esquerda brasileira, justamente na hora da audiência. Todos sabiam que os políticos de esquerda já se mostravam receptivos às demandas dos praças e sensíveis ao cavalo de tróia que se tornaria o PL, caso não fosse discutido com propriedade. Típica sabotagem. Um golpe baixo, digno de uma traição planejada.6
Num documento considerado definitivo para aprovação do PL, o Ministério da Defesa disse que nenhum militar ou pensionista ficaria com decréscimo em seus salários. O Ministério invisível talvez estivesse apostando na ignorância dos parlamentares quanto à terminologia “líquido” e “bruto”. Segundo ele, alguns militares teriam uma (“pequena”) redução líquida com manutenção ou aumento do bruto.7 Nunca se soube de alguém que comprasse remédio ou comida com remuneração bruta… O caso é que a “resposta formal do MD aos parlamentares” funcionou bastante bem e satisfez os representantes do povo (lembrando que nesse caso “povo” para os parlamentares pareceu significar “generais”).
Aos 16 de dezembro de 2019, Bolsonaro, indubitavelmente consciente do que estava fazendo, promulgou a Lei nº13.954. Mesmo tendo sido informado por várias pessoas, como o Vereador Suboficial Fabrício “da Aeronáutica” – outro dos nossos valorosos combatentes, que chegou a entregar-lhe em mãos uma carta que apontava todos os erros e covardias do PL 1.645 – , o Presidente dobrou-se aos desejos inconfessáveis de seus generais e aprovou o PL 1.645 com todas as injustiças e descalabros que continha.
Já chegamos às 1.500 palavras. Ainda há muito para lembrar. Melhor não supliciar demais os leitores. O fato inescapável é que os veteranos, principalmente a base das Forças, foram fragorosamente enganados. Um laço entre o Presidente desmemoriado e seus generais foi fortemente atado com a Lei nº13.954/2019. Uma reestruturação que aparenta ter sido forjada para justificar um aumento escamoteado para a cúpula, e talvez assim gerar um escudo de proteção psicológica para o ex-deputado recém eleito, lamentavelmente teve como efeito colateral, intencional ou não, perdas salariais para centenas de milhares de militares da reserva e para as pensionistas – justamente aqueles a quem o Presidente devia mais satisfações, senão a própria Presidência.
Reis (ainda na Lacuna)
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P.s.:
Aos que estão embarcando agora, saibam que em setembro8 deste ano, cerca de 30 pessoas, entre militares e pensionistas organizaram uma manifestação pacífica e ordeira no Rio de Janeiro, amparados pela Constituição da República e pela Lei 7.524, de 17 de julho de 1986, que dispõe sobre a manifestação, por militar inativo, de pensamento e opinião políticos ou filosóficos. Mais informações podem ser obtidas no site da Revista Sociedade Militar. Houve uma razoável repercussão na mídia leiga, não afeta a temas militares.
Em outubro, outra manifestação9, dessa vez em Brasília, que contou com pessoas de vários pontos do País. Cerca de 300, entre militares e pensionistas.
Não acredito que nenhum dos que lá esteve, gostou de ter de ir às ruas cobrar do Governo o cumprimento do acordo feito com o Senado sobre a correção da Lei 13.954/19. Mas essas manifestações, pequenas ou grandes, não importa, foram um marco na história democrática nacional. Conquanto pouco noticiada, mesmo por uma imprensa que se diz “especializada”, balizou um antes e um depois na história militar brasileira.
Reis